segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A FRONTEIRA ENTRE A ÉTICA E A LITERATURA: por uma Ética do Retorno



A FRONTEIRA ENTRE A ÉTICA E A LITERATURA: por uma Ética do Retorno[1]
ANA PAULA MEDEIROS DE MOURA[2]
Aquilo que dá sentido à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido
Milan Kundera
INTRODUÇÃO
Publicado em 1984, o livro “A Insustentável Leveza do Ser”, do autor tcheco Milan Kundera, surpreende com a abordagem da Ética nas condutas humanas. Kundera escreve sobre o relacionamento humano e cultural a partir da ótica de diferentes sujeitos ficcionais que possuem diferentes posicionamentos perante à vida. A estória é ambientada no contexto da Primavera de Praga (invasão das tropas russas à Tchecoslováquia, atual República Tcheca e Eslováquia, em 21 de agosto de 1968) e Kundera preocupa-se com a descrição e reflexão acerca desse momento histórico e político concreto em que estava imerso. A fantasia se lança como possibilidade de reflexão sobre contextos reais.
Este trabalho visa elencar alguns dos principais temas observados na narrativa, procedendo um estudo das personagens Tomas, Tereza, Sabina e Franz, e propondo possíveis reflexões e leituras acerca da problematização Ética desenvolvida por Kundera. O trabalho avaliará a obra literária, enquanto ficção, não objetivando discorrer acerca do contexto histórico-político presente na obra, tampouco o negligenciando ou secundarizando[3]. Tem se consciência da correlação texto-contexto e parte-se dessa interpretação, evitando-se anacronismos. Para cumprir tal finalidade, divide-se em capítulos que abordam sistematicamente os temas explorados por Kundera, iniciando por tópico decisivo, com a exposição do postulado filosófico-moral basilar contido na obra, e culmina em conclusão acerca da relevância da mesma.

1 A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA AÇÃO MORAL
O “Eterno Retorno”, conceito desenvolvido pelo filósofo Friedrich Nietzsche, é citado por Kundera logo à introdução de seu romance e estimula reflexões acerca das possibilidades existenciais do sujeito; acerca do sentido da existência humana. Para Nietzsche, essa “lei originária” se traduz na idéia de que “pólos” ou “faces complementares” de uma mesma realidade (dual) se alternam nas vivências em uma eterna repetição e, consequentemente, subordina à infinitude temporal a ocorrência de um número limitado de fatos, isto é, de possibilidades existenciais[4]. O Eterno Retorno condicionaria a vida humana e, à primeira vista, a esvaziaria de quaisquer sentidos possíveis de serem aferíveis, de acordo com a leitura feita por Kundera:

O eterno retorno nos diz, por negação, que a vida, que vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm o menor sentido (KUNDERA, 1984, p. 7).

À inevitável constatação da efemeridade da vida e das situações existenciais, e, portanto, à confirmação de sua “esplêndida leveza” (KUNDERA, 1984, p. 8), Kundera subjaz a tese do Eterno Retorno como saída possível para a reafirmação (dionisíaca) do sentido da própria existência e das inclinações da ação prática humana (moral); o fato de um acontecimento ou gesto “se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno” (KUNDERA, 1984, p. 7) o modifica: ele aparece “sem a circunstância atenuante de sua fugacidade” (KUNDERA, 1984, p. 8). Afinal, “como condenar o que é efêmero?” (KUNDERA, 1984, p. 8):

Se a Revolução Francesa tivesse que se repetir eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas como ela trata de uma coisa que não voltará, os anos sangrentos não são mais que palavras, teorias, discussões – são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma enorme diferença entre um Robespierre que não aparece senão uma vez na história e um Robespierre que voltasse eternamente cortando a cabeça dos franceses (KUNDERA, 1984, p. 7)

O que parece um fundamento cosmológico, ou hipotético-metafísico vazio ganha implicações éticas imensas na perspectiva de Kundera. O desenrolar da obra – na qual a descrição de um tempo histórico real e politicamente opressivo converge à ficção ou ao desenvolvimento de enredos romanesco-eróticos das personagens protagonistas – será constantemente permeado por alusões ao postulado nietzscheano. Em um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, tudo é perdoado por antecipação “e tudo é, portanto, cinicamente perdido” (KUNDERA, 1984, p. 8).
No mundo do Eterno retorno “cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza” (KUNDERA, 1984, p. 8). Para Kundera, esse era o motivo pelo qual Nietzsche dizia “que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos” (KUNDERA, 1984, p. 8).

O mais pesado dos pesos. - E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" - Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 1987, p. 164 -165).

“Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?” (KUNDERA, 1984, p. 8). O mais pesado dos fardos nos esmaga, nos faz vergar humildemente a seu peso. De outra face, a completa ausência de fardo faz com que o ser humano se torne tão leve quanto o ar;

Que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes (KUNDERA, 1984, p. 9).

“Então o que escolher? O peso ou a leveza?” (KUNDERA, 1984, p. 9).

2 DECIDIBILIDADE OU ÉTICA DA DECISÃO: A LEVEZA OU O PESO
Após breve introdução filosófica, acerca da discussão do fundamento moral que sustenta a narrativa, Kundera inicia a obra ficcional propriamente dita. Apresenta-nos, então, Tomas; homem jovem e atraente, médico-cirurgião, de comportamento singular, que não encontra dificuldades em aventurar-se amorosamente. Tomas é a personagem através da qual Kundera ilustra as conseqüências da decidibilidade, da tomada de decisão, do comprometimento (figurativamente representado pelo “peso”) e da liberdade (figurativamente representada pela “leveza”) para com situações quaisquer ou corriqueiras:

Há muitos anos penso em Tomas. Mas foi sob a luz dessas reflexões que o vi claramente pela primeira vez. Eu o vejo de pé, a uma das janelas de seu apartamento, com os olhos fixos na parede do prédio defronte, do outro lado do pátio, sem saber o que fazer (KUNDERA, 1984, p. 9).

Que fazer? Que atitude ou decisão tomar ante as nuances de vivências que se complementam e dão o colorido da vida? Essa é a pergunta que Kundera faz implicitamente, valendo-se da figura de Tomas.

Era normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida, e não se pode nem compará-la  com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores (KUNDERA, 1984, p. 11).

Daí, possivelmente, advém a necessidade de se (re)afirmar o “imperativo” moral, fundamentado e sustentado pelo postulado nietzscheano do Eterno Retorno.
A ética atrelada ao posicionamento expressado por Kundera, na obra, é a de que se existisse uma educação (livre de conceitos cristalizados em verdades absolutas e de hipocrisias ideológicas, políticas, morais, estéticas e sociais – kitsch) voltada para o pensamento não linear ou cíclico (retorno), a vida não seria considerada tão vã, porquanto, por essa perspectiva, há possibilidade de se conferir maior gravidade à própria vida e comprometimento às ações humanas. Sugere-se que a “felicidade”, categoria apreciada em Ética, se adequa a esta concepção de maneira sublime, já que a “felicidade é o desejo da repetição” (KUNDERA, 1984, p. 247).
Não obstante, a busca pela felicidade, enquanto ação prática ou inclinação moral, encontra empecilhos, no seu transcorrer, inerentes à própria condição humana;

Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço (KUNDERA, 1984, p. 11).

A estória amorosa, protagonizada por Tomas, torna verificável – nos termos da análise literária – a referida asserção; depois de um relacionamento conturbado[5], findado em divorcio litigioso, com sua primeira mulher, mãe de seu único filho (Simon), Tomas opta por um estilo de vida singular, no que se refere aos seus envolvimentos com mulheres, encontrando uma mediania pela qual se escusa de decidir entre o peso do comprometimento de uma relação e entre liberdade da vida de solteiro:

Ele as desejava, mas elas o amedrontavam. Entre o medo e o desejo era preciso encontrar um meio-termo; era o que ele chamava “a amizade-erótica”. Afirmava a suas amantes: só uma relação isenta de sentimentalismo, em que nenhum dos parceiros se arrogue direitos sobre a vida e a liberdade do outro, pode trazer felicidade para ambos (KUNDERA, 1984, p. 14).

Age assim com Sabina, por exemplo, ao estabelecer com ela uma relação amorosa absolutamente informal, fora de padrão, ainda que dotada de certa segurança. Tomas conduz sua vida dessa maneira até conhecer Tereza, o que não representou – segundo a narrativa de Kundera – qualquer motivo plausível para o abandono de sua então filosofia de vida, remetendo uma vez mais à problemática da decidibilidade:

Queria cuidar dela, protegê-la, alegrar-se com sua presença, mas não via nenhuma necessidade de mudar seu modo de vida (KUNDERA, 1984, p. 15).
Ademais, isso lhe parecia supérfluo. Ninguém melhor do que ele sabia que suas aventuras não representavam nenhum risco para Tereza. Por que privar-se delas? Essa eventualidade parecia-lhe tão absurda quanto deixar de ir a jogos de futebol (KUNDERA, 1984, p. 22).
O encontro de dois mundos. Uma dupla exposição. Por trás da silhueta de Tomas, o libertino, transparece o rosto inacreditável do romântico apaixonado. Ou então é o contrário: através da silhueta do Tristão que só pensa em sua Tereza, percebe-se o belo universo traído do libertino (KUNDERA, 1984, p. 23).

Mas seria possível ainda falar em felicidade? (KUNDERA, 1984).

Sua situação não tinha saída: aos olhos de suas amantes estava marcado pelo estigma infamante de seu amor por Tereza, aos olhos de Tereza, pelo estigma de suas aventuras com as amantes (KUNDERA, 1984, p. 23).

Tomas repete para si próprio um provérbio alemão: “Einmal ist keinmal”, “Uma vez não conta, uma vez é nunca”. Não poder viver senão uma vida, não poder testar as possibilidades e escolhas em outras vidas, é como não viver nunca (KUNDERA, 1984).
A aceitação é difícil, para Tomas. Não é fácil para a personagem que representa a metáfora do empirismo[6] aceitar o caráter de “grande necessidade” (es muss sein) e comprometimento para com as tomadas de decisão humanas; do “imperativo” moral indubitavelmente pesado e comprometido, sem possibilidade de experimentação e de caráter irreversível – o tempo não volta.

O homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer um sentimento (KUNDERA, 1984, p. 32).
Es muss sein! Tem que ser assim”, Tomas repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo que ser? (KUNDERA, 1984, p. 32).

3 DUALISMO PSICOFÍSICO E SUBORDINAÇÃO DO SENSÍVEL AO RACIONAL: A ALMA E O CORPO
A estória, inicialmente contada a partir da personagem de Tomas, ganha outros contornos com Tereza. A metáfora representada por Tereza está contida na questão do racional (da alma, do espírito) em detrimento do corpo (do sensível). A filosofia platônica concebe a alma e o corpo como contrapontos em que à alma cabe o mundo inteligível e ao corpo o sensível e remete discussão acerca da alegoria da caverna.
Platão sustenta a “Teoria do Inatismo” ou Amnese, segundo a qual antes de se encarnar, a alma teria vivido no mundo das ideias, onde tudo conheceu direta e imediatamente, sem precisar usar os sentidos. Quando a alma se une ao corpo, ela se degenera por se tornar prisioneira dele. Passa então a se compor de duas partes: alma superior (alma intelectiva) e alma inferior e irracional (alma do corpo). Escravizada pelo sensível, a alma inferior conduz à opinião e , consequentemente, ao erro, perturbando o conhecimento verdadeiro. Nesse contexto, fica claro que o conhecimento, a Verdade e a verdade em Ética e Política, para Platão, é de natureza racional e moral, e depende do controle dos sentidos (corpo) e das paixões (ARANHA, 2009).
Tereza levanta exatamente essa reflexão;

Tereza nasceu, portanto, de uma situação que revela brutalmente a irreconciliável dualidade do corpo e da alma, essa experiência humana fundamental (KUNDERA, 1984, p. 37).
Não podia identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida. O corpo era uma gaiola, e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer que olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se; essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma (KUNDERA, 1984 p. 37-38).

Kundera descreve Tereza como uma jovem que cultiva a verdadeira essência do amor platônico (idealizado) por Tomas. O modo como se porta perante a relação só torna-se compreensível a partir do conhecimento de sua vida passada, como a descreve o autor.
Nascida em um ambiente repugnante e hostil, conviveu durante toda sua vida com a mãe e trabalhando como garçonete em um bar mal freqüentado da Boêmia. A mãe, uma mulher amorosamente frustrada, fazia questão de esfregar violentamente na cara de Tereza, e com uma suposta naturalidade na aceitação, a miséria humana. Tereza, caracterizada como sensível e sonhadora, acabou tornando-se uma dessas pessoas que exalta a vida do espírito e da alma, em detrimento da vida carnal, ela tentava se ver através do próprio corpo:

Contemplava-se, longamente, e o que a contrariava era encontrar em seu rosto alguns traços da mãe. Olhava-se com mais obstinação e dirigia sua vontade para se abstrair da fisionomia materna: fazer disso tábua rasa, e só deixar prevalecer aquilo que era ela mesma. Quando conseguia, era um momento embriagador (KUNDERA, 1984, p. 38).

Era o desejo de não ser um corpo como todos os outros corpos que fazia com que Tereza idealizasse seu amor para com Tomas. Tereza depositou sua vida nas mãos de Tomas, desde o primeiro instante em que o conheceu, para que ele pudesse a libertar do mundo hostil e opressivo em que vivia (KUNDERA, 1984).
Tereza não compreendia a distinção que Tomas fazia dela, em relação aos seus outros relacionamentos. Não poderia ver sua “memória poética” (KUNDERA, 1984, p. 174).

O que urrava nela era o idealismo ingênuo de seu amor que queria ser a anulação de todas as contradições, a anulação da dualidade do corpo e da alma, e talvez mesmo, a anulação do tempo (KUNDERA, 1984, p. 49).
Viera viver com ele para escapar do universo materno, em que todos os corpos eram idênticos. Viera viver com ele para que seu corpo se tornasse único e insubstituível. E eis que ele traçava um sinal de igualdade entre ela e as outras (KUNDERA, 1984, p. 52).

Ambos, Tereza e Tomas – aquela, metáfora do racionalismo extremado (idealismo); este, expressão caricatural do empirismo –, com referenciais de vida diferentes, não poderiam compreender o que se passava na mente um do outro.

3 A HERMENÊUTICA EM “AS PALAVRAS INCOMPREENDIDAS”
Na terceira parte da narrativa, intitulada “As palavras incompreendidas” Kundera revela-nos o relacionamento vivido entre Sabina e Franz.  Conta-nos do distinto processo de construção das características e do caráter próprio a cada uma destas personagens, durante suas vidas, e de como se deu encontro de ambos.
Seus referenciais de vida são claramente distintos, o que provoca uma “falha comunicativa” (um “aguilhão semântico” que se desdobra numa “situação patética”, o amor também não é uma “piada grotesca”) que, por sua vez, os faz atribuir diferentes significados aos mesmos conceitos

Se eu retomasse todos os encontros de Sabina e Franz, a lista de mal-entendidos faria um grande dicionário (KUNDERA, 1984, p. 77).

A partir daí, o autor contempla-nos com um pequeno léxico de palavras interpretadas de forma distinta por cada um, dos quais, o que mais chama atenção, seja a compreensão do conceito de “verdade”, segundo cada concepção

VIVER DENTRO DA VERDADE: É uma fórmula que Kafka usou num diário ou numa carta. Franz não se lembrava bem. Estava seduzido por essa fórmula. O que era viver dentro da verdade? Uma definição negativa era fácil: era não mentir, não se esconder, não dissimular nada. Depois que conhecera Sabina vivia na mentira. Conversava com sua mulher sobre congressos em Amsterdã, conferências em Madri que jamais tinham acontecido, tinha medo de passear com Sabina nas ruas de Genebra (KUNDERA ,1984, p. 97).

Franz considera que a verdade só pode ser obtida com a total supressão da esfera íntima, privada e individual, ou melhor, para ele, somente a fusão das esferas pública e privada constitui a real fórmula da verdade ou o meio para se chegar a tal.
Franz remete ao episódio histórico que permea a narrativa; a concepção moral-social dos regimes totalitários (em especial a do regime stalinista, aludido) convenientemente postula pelo fim (negação) da vida individual. Esta é, por sua vez, a exata crítica feita pelo autor quanto ao episódio da Primavera de Praga e quanto ao comunismo e Sabina representa a subversão, insurgência ou resistência, até certo ponto. Para ela:

Não mentir nem para si nem para os outros, só seria possível se vivêssemos sem público. Havendo uma única testemunha de nossos atos, adaptamo-nos de um jeito ou de outro aos olhos que nos observam, e nada mais do que fazemos é verdadeiro. Ter um público, pensar no público, é viver na mentira. Sabina despreza a literatura em que o autor revela toda a sua intimidade, e também a de seus amigos. Quem perde sua própria intimidade perde tudo, pensa Sabina. E quem a ela renuncia conscientemente é um monstro (KUNDERA, 1984, p. 97).

Essa maneira de se posicionar perante à vida é o que distingue a personagem de Sabina da personagem que representa a mãe de Tereza, por exemplo. Ambas exploram profunda e intensamente todos os vieses de suas sexualidades. Sabina, porém, conserva seu íntimo. A mãe de Tereza exacerba às últimas conseqüências e divulga detalhes de sua vida íntima para todos. A mãe de Tereza seria um monstro, segundo o pensamento de Sabina. Sabina faz a separação nítida entre esfera pública e privada (esta última compreende a esfera íntima). Para ela esta é a única forma de se viver “dentro da verdade” (KUNDERA, 1984, p. 97).

4 KITSCH: IDEAL ESTÉTICO E IDEOLOGIA DA GRANDE MARCHA
Paradoxalmente, Sabina e sua concepção acerca da verdade aparecem na mesma via do pensamento que a própria personagem acusa como ideológico/hipócrita e quer, supostamente, se insurgir. Kundera especula, agora, a respeito do Kitsch. Kitsch é uma palavra de origem alemã de significado e aplicação controversos, usualmente empregado no estudo da Estética para designar mau gosto, comoção e falta de critérios dos produtos destinados ao consumo de massa.
Kundera entende o termo como uma atitude e um espírito geral de complacência e supressão do senso crítico, que pode se estender a áreas bem distintas da arte (enquanto técnica), como a política, a religião, a economia, o erotismo e praticamente toda a esfera da vida humana.
A estÉtica do kitsch, de enorme penetração na psicologia das massas, muitas vezes é usada pelas elites para dirigir a opinião pública, seja na forma de publicidade comercial, educação escolar, propaganda partidária ou iconografia religiosa. Mais ainda, para o autor “o kitsch exclui de seu campo de visão tudo que a existência humana tem de dionisíaco; de essencialmente inaceitável” (KUNDERA, 1984, p. 207).

A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha uma conotação ética, mas estética. O que a repugnava não era tanto a feiúra do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se disfarçara, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a festa do 1° de Maio (KUNDERA, 1984, p. 207).

O kitsch não era apenas uma ideologia comunista ou um acordo político com o comunismo, mas sim um “acordo categórico com o ser” (KUNDERA ,1984, p. 207) pelo qual tudo que o mundo tem de mais “inaceitável” é negado como se não existisse, daí a subsistência dos tabus e hipocrisias morais e regras de comportamento social a que Nietzsche chamou “moral de rebanho”. O kitsch é conveniente, é uma convenção social; para se consolidar, necessita ser compartilhado pelo maior número de pessoas possível. O kitsch comove.
Sabina, durante toda sua vida afirmou que seu inimigo era o kitsch. “Mas será que ela não o carregava no fundo de seu ser?” (KUNDERA, 1984, p. 213). Se o kitsch mascara a realidade, sua concepção de verdade não a faz diferente do próprio kitsch. Na vida pública, Sabina encena e mascara sua própria realidade.
Sabina aparece como tudo o que mais odeia. De outra face, como conservar a própria individualidade sem se utilizar do kitsch ante tal invasão sócio-política opressora e cotidiana? O indivíduo não pode ser uma extensão do coletivo. Não suportaria a perda do subjetivismo que lhe é peculiar, ao mesmo tempo em que se identifica enquanto “eu” somente em função do “coletivo” e das comparações entre outros sujeitos.

5 O VERDADEIRO TESTE MORAL DA HUMANIDADE
Na última parte de seu livro, “O sorriso de Karênin”, Kundera conta a trajetória de Karênin, a cadela dada por Tomas de presente à Tereza e registra a diferença de percepção do tempo entre as espécies biológicas. Reflete novamente, portanto, acerca do postulado filosófico e ético-moral que sustenta toda sua obra – Eterno Retorno.
O tempo do homem é linear e o do cão circular. Quando mudaram-se para o interior, a “única possibilidade de evasão que os restava” (KUNDERA, 1984, p. 233) “o tempo em que Tereza e Tomas viviam se aproximava da regularidade do tempo de Karênin” (KUNDERA, 1984, p. 236). O fato de o tempo do homem ser apreendido de maneira linear acaba por apagar a significância de uma vida, de uma história

Muitas vezes nos refugiamos no futuro para escapar do sofrimento. Imaginamos uma linha na pista do tempo, e pensamos que a partir dessa linha o sofrimento presente deixará de existir (KUNDERA, 1984, p. 139).

Nós, seres humanos, sujeitos sociais, culturais, morais, procuramos a evasão na nostalgia do passado ou na esperança do futuro. Kundera atenta para uma preocupação com a ação prática (moral) presente. Preocupa-se com a Ética e com a Política vigentes em seu tempo. Não se pode negar que a vida tem caráter passageiro, que as situações vividas passarão. Tudo passa.
Contudo, a ética circular introjetada pelo Eterno Retorno dá-nos uma nova perspectiva das nossas próprias escolhas. Faz-nos refletir acerca de nossas ações e de conferir grande importância e comprometimento às mesmas. Não no sentido de verificabilidade e comparação entre todas as hipóteses de ação prática, afinal, como vivo uma única vida (“esboço sem quadro”), não posso estar “certo de ter agido bem” (KUNDERA, 1984, p. 184). Mas, com a filosofia do eterno retorno, posso estar “certo de ter agido como queria” (KUNDERA, 1984, p. 184) agir, de ter decidido como queria decidir. Essa é a verdadeira proposta de uma Ética calcada no Retorno[7].

Em torno de Tereza e de Tomas, Karênin traça o círculo de sua vida, baseada na repetição, esperando deles a mesma coisa (KUNDERA, 1984, p. 247).

Outra proposta de reflexão, feita por Kundera, diz respeito ao relacionamento entre o Homem e as outras espécies animais. Para Kundera, a ação moral pode ser medida ou determinada pelas relações de força ou relações de poder entre o indivíduo humano e os que estão hierarquicamente abaixo dele na escala evolutiva darwinista (KUNDERA, 1984).

A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais (KUNDERA, 1984, p. 240).

Esta é, sem dúvida, uma das passagens mais belas da obra de Kundera.

6 CONCLUSÃO
A belíssima obra literária de Milan Kundera faz-nos refletir acerca da Ética e da condição humana, sob um regime político totalitário e sob imposição de uma atitude moral social convencional, que praticam o horror e anulam o humor, o colorido e o romantismo do dia-a-dia. Para Kundera, apenas através da libertação dos sujeitos e afirmação do subjetivismo pessoal poderia ocorrer uma verdadeira revolução.
Mostra-nos a necessidade de se conferir valor e comprometimento às ações, através de uma Ética que exclui o caráter fugaz da vida. Especula acerca das relações a que todos nós estamos propensos ou sujeitos (submetidos pela contingencialidade do fenômeno humano, do humanamente possível). Propõe uma abordagem inteiramente nova do problema moral e contribui imensamente para a reflexão da ação prática humana e seus desvios, além de fomentar o debate acerca da moral cíclica. Em sua obra, Kundera militou por uma ética do retorno.


REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia .São Paulo: Moderna, 2009.

DWORKIN, Ronald. O que é Direito. In. O Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

________________. Interpretação. In. O Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GOLDFEDER, Sonia. A Primavera de Praga. São Paulo: Brasiliense, 1981.

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Círculo do livro, 1984.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. In. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

__________________. Sobre Niilismo e Eterno Retorno. In. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2011.







[1] Trabalho apresentado como avaliação na disciplina “Abordagem Moderna da Teoria da Justiça”, ministrada pelo Professor Dr. Luiz Otávio Pereira.
[2] Discente regularmente matriculada no curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Pará/Instituto de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito, sob o número de matrícula 12641014101.
[3] Sugestão de leitura introdutória acerca do assunto: GOLDFEDER, Sônia. A Primavera de Praga. São Paulo: Brasiliense, 1981.
[4] A idéia diz respeito à possibilidade das situações da existência/vida se repetirem indefinidamente no tempo, por força de uma finitude das possibilidades frente à infinitude do tempo (NIETZSCHE, 1987).
[5] “Tomas vivera apenas dois anos coma primeira mulher e tivera um filho. No julgamento do divórcio, o juiz confiou à mãe a guarda do filho, condenando Tomas a pagar-lhes um terço de seu salário. Concedeu-lhe também o direito de ver o filho duas vezes por mês. Mas toda vez que Tomas deveria vê-lo, a mãe desmarcava o encontro. Ele se imaginava mais tarde quixotescamente querendo inculcar suas ideias na cabeça do filho, ideias diametralmente opostas às da mãe. Um domingo em que a mãe, mais uma vez, desmarcara no último minuto uma saída com o filho, ele decidiu que nunca mais o veria. É obvio que ninguém estava preparado para aceitar tal raciocínio. Seus próprios pais o reprovavam. Conseguiu, portanto, em pouco tempo, desembaraçar-se de uma esposa, um filho, uma mãe e um pai” (KUNDERA, 1984, p.13 – 14).
[6] A profissão que exerce (medicina), o "bisturi imaginário" (KUNDERA, 1984, p. 167), o "milionésimo de diferença" (KUNDERA, 1984, p. 166), os sentidos à flor da pele, a rigorosa separação e distinção entre o subjetivo (alma, amor por Tereza) e o objetivo (corpo, desejo sexual por outras mulheres)... Tomas representa a corrente empírica, figurativamente.
[7] A conceituação de “verdade” ou “mentira”, “bem” ou “mal”, não encontra acomodação no pensamento de Nietzsche, que postula para além das noções de bem e de mal. A Ética Cíclica busca criação através da destruição: só pela complementação é que poderemos transcender e reafirmar a vida em detrimento dos valores que degeneraram e envenenaram a humanidade. A moral de rebanho é a verdadeira cicuta, não as “escolhas ruins”. Não posso crescer se não experimento o declínio e vice-versa. O Eterno Retorno se afina com o conceito de “amor fati” (amor ao destino que se escolhe, deliberadamente).

segunda-feira, 23 de junho de 2014

O ESTIGMA NA SOCIOLOGIA DE ERVING GOFFMAN



O ESTIGMA NA SOCIOLOGIA DE ERVING GOFFMAN[1]


Márkia Suzani Miranda Cardoso[2]
markiasuzani@yahoo.com.br


INTRODUÇÃO

A vida em sociedade engendra expectativas normativas, as quais as pessoas devem se enquadrar. Para um grupo especial de pessoas a adaptação às normas impostas pelo meio social, pode causar muitos transtornos. As pessoas as quais me refiro são as portadoras de características que as diferem do modelo estabelecido para a categoria que seriam inseridas na sociedade, segundo um modelo preestabelecido.
As questões envolvendo os portadores de estigmas sejam aqueles mais característicos, como deformidades físicas, ou aqueles decorrentes de sua origem cultural, do desenvolvimento histórico ou político de seu grupo, são o núcleo da obra “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada”, do sociólogo canadense Erving Goffman.
Segundo Mello (2011), o trabalho deste autor tem dado importantes contribuições não apenas para a sociologia, mas também para a antropologia, psicologia social, psicanálise, comunicação social, linguística, literatura, à educação, às ciências da saúde, entre outras áreas do conhecimento. 
Este trabalho procura demonstrar como se desenvolve a trama das relações sociais entre os ditos “normais” e os estigmatizados, a partir dos estudos da referida obra, com ênfase nas ideias apresentadas no quarto capítulo, intitulado “O eu e seu Outro”. Inicialmente faremos uma apresentação do autor, aspectos de sua vida, sua formação acadêmica e suas principais ideias. Em seguida são apresentados os principais conceitos desenvolvidos na obra, para então adentrar as teorias tratadas no quarto capítulo.


1 SOBRE O AUTOR

Considerado um grande teórico do século XX, Ervin Goffman é canadense, nasceu em 11 de Junho de 1922. Era sociólogo graduado na Universidade de Toronto e tornou-se doutor pela Universidade de Chicago. Goffman foi membro do grupo conhecido como a Escola de Chicago, cujo principal pressuposto é o de que as pessoas se relacionam por meio de símbolos que estruturam o processo comunicativo. Esse pressuposto inicial serviu de fundamento para a criação do Interacionismo Simbólico, que se baseia na ideia de que as pessoas agem de acordo com os significados fornecidos pelo mundo, oriundos da interação social entre elas, e que esses significados são manipulados por um processo de interpretação, através do qual são transformados à medida que os seres humanos se relacionam com o mundo (BRABO, 2011).
Goffman publicou onze livros e vários ensaios. Foi descrito como “o desbravador do cotidiano”, por ter retratado minuciosamente em sua obra as interações sociais que ocorrem no cotidiano e sua importância para a vida em grupo (BRABO, 2011).
Foi considerado um pesquisador inovador, pois empregava métodos característicos no desenvolvimento de seus estudos, o que lhe rendeu críticas e elogios ao longo de sua vida profissional. A característica de “pesquisador herói”, herdada da Escola de Chicago, se revela em suas pesquisas como, por exemplo, quando ele se internou em um hospital psiquiátrico de Washington, nos Estados Unidos, por um ano, em 1955. E ao trabalhar em um cassino em Nevada, também nos Estados Unidos, com o objetivo de estudar os jogos e seus jogadores. Goffman se insere no cotidiano dos indivíduos a serem pesquisados, interessando-se por micro aspectos das relações sociais (MELO, 2008).
Segundo Bourdieu (2004), Erving Goffman foi aquele que fez a sociologia descobrir o infinitamente pequeno, aquilo que permanecia ignorado por outros pesquisadores. Bourdieu ao se referir a sociologia praticada por Erving Goffman a chamou de “aquela que consiste em olhar de perto e longamente a realidade social” (BOURDIEU, 2004, p. 11). Para Melo (2008), a “sensibilidade sociológica” do autor pode ter sido a grande marca de sua obra. O centro de suas análises está na observação dos gestos, olhares, posicionamento e verbalização dos participantes de um encontro social (MELO, 2008).
Erving Goffman foi considerado o precursor do estudo empírico da vida cotidiana, trabalhou como professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia e da Universidade de Pensilvânia. Em 1980, foi eleito presidente da American Sociological Association. No Brasil, os trabalhos do autor só foram mais conhecidos nos anos 60, com a tradução de algumas de suas obras para a língua portuguesa (BRABO, 2011).


2 PRINCIPAIS CONCEITOS DESENVOLVIDOS NA OBRA ESTIGMA: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada

Erving Goffman dedicou-se em sua trajetória a estudar as pessoas que são discriminadas ou controladas pela sociedade, seja por apresentarem uma marca que as distingue das demais, ou por apresentarem comportamentos desviantes, isto é, comportamentos que se afastam das normas que são estabelecidas pelo grupo social que pertencem (BRABO, 2011).
Como o próprio nome sugere a obra “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada” consiste em um conjunto de notas sobre as pessoas estigmatizadas e seu estigma, e a maneira como se comportam quando estão diante dos outros, que são os considerados normais. São sobre questões que envolvem estas pessoas e suas relações sociais que Goffman se debruça nesta obra, da qual passo a ressaltar os principais pontos.
2.1 CONCEITOS ATRIBUÍDOS AO TERMO ESTIGMA
São vários os conceitos atribuídos a palavras estigma, para os gregos referia-se a sinais corporais através dos quais se buscava por em evidência alguma característica extraordinária ou considerada negativa do ponto de vista moral. Na Grécia os sinais eram aplicados literalmente nas pessoas que desviavam o comportamento dos padrões desejados: “Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor, uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos.” (GOFFMAN, 1988, p. 5).
Posteriormente na Era Cristã, mais dois significados foram atribuídos ao termo estigma: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de origem divina e o segundo referia-se a sinais corporais de distúrbio físico.
Atualmente, é uma característica que distingue o indivíduo da categoria onde, a princípio, seria incluído. O estigma seria uma discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real do indivíduo. Normalmente refere-se a um atributo depreciativo.  Um estigma é então, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo.
Goffman (1988) aponta a existência de três tipos de estigma. Em primeiro lugar aqueles relacionados às deformações físicas; em segundo, as falhas de caráter individuais, revelados por condições de distúrbios mentais, prisão, desemprego e alcoolismo, por exemplo. E por fim os estigmas advindos de atributo raciais, religiosos e de nação, que são transmitidos através de gerações. Em qualquer dos tipos mencionados pelo autor estão presentes as mesmas características sociológicas: “um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que pode se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus” (GOFFMAN, 1988, p. 7). Aqueles que não se afastam negativamente das expectativas da sociedade são chamados pelo autor de normais.

2.2 RELAÇÃO ENTRE ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL
Quando estamos diante de uma pessoa, as primeiras características que observamos nos permitem presumir quais atributos ela possui e em qual categoria ela se enquadra, então criamos a sua identidade social. Quando os atributos observados diferenciam a pessoa a ponto de impedir que ela seja enquadrada em uma categoria, estes atributos constituem-se em estigmas. Nas palavras do autor:
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído (...) Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem (...) (GOFFMAN, 1988, p. 06).

O processo de estigmatização ocorre quando há uma discrepância entre um atributo e o estereótipo associado a ele. De acordo com o autor, o indivíduo pouca vezes tem consciência de que possui e aplica estereótipos e atributos preconceituosos aos outros, e que esses estereótipos em sua maioria depreciativos inferiorizam o estigmatizado:
Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa (...) Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original (GOFFMAN, 1988, p. 08).

Segundo Goffman as cobranças que fazemos aos indivíduos poderiam ser mais adequadamente chamadas de demandas, e o caráter que atribuímos ao indivíduo poderia ser encarado como uma imputação, que para o autor corresponde a sua identidade social virtual. Enquanto que os atributos que ele demonstra possuir, correspondem a sua identidade social real. A relação entre os normais e os estigmatizados é definida pela forma como gerem as discrepâncias entre a identidade social virtual e a identidade social real, ou seja, entre as características atribuídas ao indivíduo pelos normais e o que realmente ele é.
Diante de sua condição de estigmatizado o indivíduo pode reagir de várias maneiras: tentando corrigir aquilo que causa o seu defeito através de uma cirurgia plástica, por exemplo; pode ainda enveredar pelo caminho da superação, se empenhando na realização de atividades que seriam inadequadas devido a sua condição; o estigmatizado pode também usar o estigma como justificativa para um fracasso determinado por outros motivos; ou podem enxergar no estigma uma chance de aprendizado e de encarar a vida de forma diferente o que lhes proporcionaria uma maior sensibilidade.

2.3 CONTATOS MISTOS: o encontro entre normais e estigmatizados
A maior problematização que Goffman identifica com relação ao estigma se dá pela ocorrência do que ele denominou “contatos mistos” , quando os estigmatizados e os normais estão na mesma situação social, um diante do outro. De acordo com Goffman (1988), no encontro entre normais e estigmatizados ambos enfrentarão as causas e efeitos do estigma. O indivíduo estigmatizado descobrirá a sua insegurança diante da maneira como é recebido e identificado pelos normais, o que é provocado pelo receio que o estigmatizado tem, de ser definido apenas pelo seu estigma.
Em um contato misto o estigmatizado poderá reagir ora com retração, ora de forma agressiva, comportamento gerado pela dúvida em relação à imagem que os outros terão dele. Já os normais agirão com receio de serem mal interpretados pelos estigmatizados, pois a demonstração de interesse pode causar a impressão de que os normais estão se excedendo, ou que na realidade estão ignorando o seu estigma.

3 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ATRAVÉS DO OUTRO
No capítulo quatro da obra em exame intitulado “O eu e seu Outro” o autor se volta para a investigação da resposta que a pessoa estigmatizada elabora para situação em que se encontra na sociedade. Segundo Goffman o que é mais relevante para os estigmatizados é identificar o seu lugar na estrutura social, o autor adverte que suas conclusões baseiam-se na condição de estigmatizados de vários tipos, desde aqueles que possuem estigmas construídos por sua história e suas posições na sociedade, como negros e judeus, até aqueles que possuem um defeito físico que dificulta quase todas as suas situações sociais, inclusive aqueles considerados normais, mas que possuem um estigma semiescondido.
Segundo Brabo (2011) na obra “A Representação do Eu na Vida Cotidiana” Goffman descreve uma perspectiva sociológica baseada no Interacionismo Simbólico, a partir da qual é possível estudar a vida social utilizando-se da metáfora da representação teatral, que consiste na afirmação de que o homem em interação social apresenta-se diante de seus pares, tentando dirigir e controlar as impressões que os outros terão dele, da mesma forma que um ator representa no palco. Para o autor cada um de nós representa um papel na sociedade vinculado ao papel que as outras pessoas desempenham. Então Goffman conclui que o homem constrói a sua identidade a partir das relações estabelecidas com o outro.
De acordo com Goffman (1988) todas as pessoas são ao mesmo tempo normais e estigmatizadas. A estigmatização é uma característica inerente a toda sociedade que possui normas de identidade, que podem gerar desvios, mas também originam conformidade nos indivíduos. A identidade social é construída, por meio da interação social face a face dos indivíduos normais e estigmatizados, o que resulta em uma influência recíproca nas ações uns dos outros.
As pessoas que possuem um estigma facilmente identificável sofrem por saber que demonstram a todos a sua situação. A partir desta constatação o autor conclui que não é para o estigmatizado que se deve voltar os olhos para a compreensão da diferença, mas sim para o outro, isto é, para o normal. Segundo Goffman a vida em sociedade requer que todos compartilhem um único conjunto de expectativas normativas. E o fracasso ou o sucesso em manter as normas definidas influencia diretamente sobre a integridade psicológica do indivíduo.
Para ilustrar o que afirma, o autor cita exemplos como a visão e a alfabetização, que são normas sustentadas pela maioria dos membros da sociedade, no entanto há outras normas, como as associadas com a beleza física, que ganham status de ideais se tornando um padrão difícil de alcançar, e que em algum momento da vida todos fracassarão na sua sustentação. Sobre normas associadas à beleza física o autor exemplifica:
Por exemplo, num sentido importante há só um tipo de homem que não tem nada do que se envergonhar: um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos esportes (GOFFMN, 1988, p. 109).


As características citadas no excerto constituem um padrão ideal de homem da sociedade americana. Desta forma, qualquer homem que não consiga se enquadrar poderá se considerar indigno, incompleto e inferior. Em alguns momentos ele se encobrirá assumindo a sua inadequação como um estigma e em outros é possível que perceba que está sendo exigente demais consigo mesmo.
Os valores de identidade gerais de uma sociedade podem não estar firmemente estabelecidos ou escritos em algum lugar, e ainda assim podem projetar algo sobre seus membros. Diante de uma expectativa normativa o indivíduo tenta se enquadrar a todo custo mesmo que tenha que ocultar a sua condição de estigmatizado perante a sociedade. Por isso, o autor afirma que as normas de identidade social produzem tanto desvios como conformidade.
O indivíduo exerce controle estratégico sobre a imagem de si mesmo e a imagem que o outro constrói para ele. Segundo o autor está implícita nessa relação uma colaboração tácita entre os normais e os estigmatizados: aquele que se desvia pode continuar preso à norma porque os outros mantêm cuidadosamente o seu segredo, fingem ignorar sua revelação, ou não prestam atenção às provas o que impede que o segredo seja revelado; esses outros, em troca, podem permitir-se ampliar seus cuidados porque o estigmatizado irá, voluntariamente, se abster de exigir uma aceitação que ultrapasse os limites que os normais consideram cômodos.
A manipulação do estigma é um processo comum na sociedade. As mesmas características estão presentes seja no caso de uma diferença tradicionalmente definida como estigma, quer uma diferença insignificante. A partir disso o autor começa a delinear a ideia de que o papel dos normais e o papel dos estigmatizados são parte do mesmo complexo, utilizando a metáfora do palco, normais e estigmatizados são atores contracenando no mesmo espetáculo. Essa ideia levou Goffman a estabelecer que o estigmatizado e o normal têm a mesma caracterização mental, que é baseada na caracterização-padrão da sociedade em que estão inseridos.
Desta forma fica evidente a existência na sociedade da relação eu - outro, normal-estigmatizado. As pessoas que repentinamente se descobrem livres de um estigma, como nas operações plásticas bem sucedidas, podem ser rapidamente consideradas por si mesmas e pelos outros, como pessoas que alteraram a sua personalidade, assim como as que de repente adquiriram um estigma podem experimentar uma mudança na sua personalidade aparente. Essas mudanças resultam da nova situação enfrentada pelo individuo, que requer consequentemente novas estratégias de adaptação. A mudança de status de estigmatizado para normal é psicologicamente sustentada pelo indivíduo, pois é feita em uma direção desejada por ele. Enquanto que uma transformação súbita de pessoa normal para pessoa estigmatizada implica em transtornos psicológicos, tornando a sustentação da mudança muito difícil.


CONCLUSÃO         

Vimos que a sociedade impõe normas às pessoas, e que estas quando não respondem às expectativas normativas, são imputadas com um estigma, que corresponde a uma incoerência entre a identidade social real e a virtual dos indivíduos.
A partir das análises da interação social entre normais e estigmatizados, Erving Goffman conclui que um é parte do outro, isto é, há um complexo normal-estigmatizado que proporciona uma influência mútua entre os indivíduos, por meio da qual constroem suas identidades sociais.
Para o autor tanto o normal quanto o estigmatizado são frutos das perspectivas geradas em situações sociais durante os contatos mistos, pois tanto um quanto o outro possuem a sua consciência sobre si próprios influenciada pelos modelos estabelecidos pela sociedade. Por isso o autor considera tão importante que o estigmatizado busque construir a sua identidade social real, para que possa criar mecanismos de adaptação ao meio social.




REFERÊNCIAS

BRABO, GABRIELA MARIA BARBOSA. A INCLUSÃO ESCOLAR DO ALUNO COM DEFICIÊNCIA A PARTIR DA PERSPECTIVA TEÓRICA DE ERVING GOFFMAN. In: VII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL. 2011. Londrina – SP. Anais. p. 829-837. Disponível em:<http://www.uel.br/eventos/congressomultidisciplinar/pages/arquivos/anais/2011/processo_inclusivo/078-2011.pdf> Acesso em 24 de Out. 2013.

BOURDIEU, Pierre. Goffman: O descobridor do Infinitamente Pequeno. In: GASTALDO, Edison Luis (Org.). Erving Goffman: desbravador do cotidiano. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2004. p.11-12.

GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1988. Digitalização em 2004. Disponível em:<http://www.serj.com.br/IBMR/TEXTOS%20IBMR/institucional2011sem01noite/ESTIGMA.pdf>. Acesso em 15 de OUT. 2013.

MELO, Lucas Pereira. Erving Goffman: o descobridor do infinitamente pequeno. Academia.edu, Campinas –SP: Lucas Pereira Melo, 2008. Disponível em:<http://www.academia.edu/4237383/Erving_Goffman_o_descobridor_do_infinitamente_pequeno>. Acesso em 03 de nov. 2013.















[1]Ensaio apresentado à disciplina Ética Jurídica, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Otávio Pereira, a partir da bibliografia: GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1988, 158 p.
[2]Aluna regularmente matriculada na turma 060/2013 do Curso de Graduação em Direito, do Instituto de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Pará, cujo número de matricula é 13641006501.