terça-feira, 13 de dezembro de 2011


PEQUENA HISTÓRIA DA SERVIDÃO DOS DEUSES E HERÓIS[1]
GUSTAVO PEREIRA FREITAS[2]

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A SOCIEDADE PRÉ-HEMÉRICA: Semente da Servidão. 3 O NASCIMENTO DA POLÍTICA DA SERVIDÃO. 3.1 O MITO E A SERVIDÃO NO OLIMPO. 3.2 HERÓIS: entre Deuses e Homens. 4 A EDUCAÇÃO E O HÁBITO. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO
Servidão, dentre suas várias definições, significa “sujeição, dependência”, conforme o dicionário Aurélio online. Esta dependência pressupõe a existência de uma relação no mínimo dual entre um senhor e o escravo, senhor e o servo, soberano e o vassalo, etc. Mas o sentidoque iremos utilizar essa palavra provém de Étienne de La Boétie o qual em seu livro Discurso da Servidão Voluntária afirma paradoxalmente que a servidão só existe pelo consentimento do servo, escravo, vassalo ou do povo. Vejamos o que diz o autor:
Coisa realmente admirável, porém tão comum, que deve causar mais lástima que espanto, ver um milhão de homens servir miseravelmente e dobrar a cabeça sob jugo, não sejam obrigados a isso por uma força que se imponha, mas porque ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados somente pelo nome de um, que não deveriam temer, pois ele é um só, nem amar, pois é desumano e cruel com todos (BOÉTIE, 2009, p. 30).
Nesse sentido, Boétie, afirma que a razão central de os homens servirem voluntariamente é hábito. Os homens foram condicionados e acostumados à obediência e, desde a antiguidade, os senhores utilizam de todos os meios para enganar o povo, exemplo disso, é a política do pão e circo durante o império romano.
A educação, nesse processo, exerce um papel central visto que “O homem é naturalmente livre e quer sê-lo, mas sua natureza é tal que se amolda facilmente à educação que recebe” (BOÉTIE, 2009. P. 48). Ele não faz apologia ao determinismo, mas ressalta que o homem é de sobre maneiro influenciado a não criticar e não pensar sobre a ordem que lhe é imposta.
O remédio para a servidão voluntária não passa necessariamente pela revolução armada, Boétie, acreditava que bastava os homens desobedecerem ao Tirano para tão logo ele está deposto. Dizia, “ não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se o país não consentir com sua servidão. Nem é preciso tirar-lhe algo, mas só não lhe dar nada” (BOÉTIE, 2009. p. 34). Aíesta a grandeza do pensamento do autor, ele emancipa-se do seu tempo e antevê que é possível a revolução pela desobediência civil.
Assim, inspirado nolivro de Boétie, concentramos nossa análisena Ilíada obra atribuída a Homero, dada sua importância e influência para a cultura do ocidente e por ser mais antiga que a Odisseia, epopeia também atribuída ao poeta, tentando fazer uma leitura política que, se bem sucedida, verificará a presença da ideia da servidão voluntária nacultura grega, sendo o início de uma política da servidão transmitida pela educação até os nossos dias.

2 A SOCIEDADE PRÉ-HEMÉRICA: Semente da Servidão
Na ilíada obra de autoria atribuída a Homero temos uma cultura, em vários pontos, uniforme e seguramente já podemos falar nessa obra em uma cultura grega. Esta a época do cantor já se encontrava marcada pela ideia de servidão, até mesmo entre as lideranças gregas há uma hierarquia, senão vejamos a seguinte passagem da Ilíada:
Foge, Agamemnon replicou-lhe, foge,
Se é teu prazer; que fiques não te imploro:
Honram-me outros, e em Júpiter confio.
Dos reis alunos dele és quem detesto;
Só respiras discórdias, rixas, pugnas.
Tens valor? agradece-lho. Os navios
Recolhe e os teus; nos Mirmidões impera:
Não te demoro; esse rancor desdenho.
Priva-me de CriseidaFebo Apolo:
Em nau minha esquipada vou mandá-la.
À tenda hei de ir-te mesmo, eu to previno,
Tomar-te a elegantíssima Briseida;
Sentirás em poder como te excedo,
E outrem se me antepor e ombrear trema.(HOMERO, 2009,p. 69. Grifei)
O canto épico assim parece demonstrara existência da ideia política da servidão, posto que em diversas passagens existam referências a reis que devem ser obedecidos, acima se vislumbra Agamemnon que pune asacusações de Aquiles tomando-lhe a Briseida.Para verificar de onde decorre essa ideia já consolidada no período homérico é necessário olharmos um pouco mais atrás e entendermos a formação do povo grego.
O povo grego não foi o primeiro a habitar a Península Balcânica. Nesta região, já  habitavam culturas antigas, noticia-se que tais povos seriam os Pelasgos, os Cários e os Léleges. Essa noção é fundamental para compreender a gênese do povo grego a qual ocorre num processo de sucessivas migrações e invasões naquela região. Como afirma AlbinLesky (1995) a chegada dos povos indo-europeus, basicamente, entre esses povos, encontravam-se os Aqueus e os Dórios, na região provocou um confronto com a população que lá se encontravam originando o povo grego.
Desses migrantes, os primeiros a chegar foram os aqueus, por volta de 1600a 1500 a. C., pois após sua chegada invadiram e dominaram Creta a qual era o maior expoente político e econômico da época. “Os habitantes de Creta, os cretenses, eram o antigo povo jônio, e já tinham desenvolvido toda uma organização social, cultura e política e consideráveis habilidades marítimas, que lhe permitiram relações comerciais muito significativas” (AMARAL; MELO; MURARI, 2009) o sincretismo entre os aqueus e os cretenses dá origem a chamada civilização micênica.
Os próximos a chegarem à região foram os dórios por volta de 1200a. C, vindos do Norte, um povo extremamente agressivo que devastou a cultura micênica. O abuso chegou a tanto que os séculos que se seguiram a invasão dória ficaram conhecidos como “obscuros”. Segundo anota Lesky (1995) são as épocas que menos se conhece sobre a cultura grega.
Essa perspectiva histórica, da formação do povo grego,é importante para o desenvolvimento do nosso tópico,porque a breve noção nos remete a uma conclusão preciosíssima que o período pré-homérico émarcado pela guerra. A luta entre povos que não tinham um linguajar comum, os quais não partinhavam dos mesmos hábitos, cujo objetivo era a sobrevivência teve como resultado, por um capricho do destino, a formação de uma única cultura.
Inicialmente, a formação de uma cultura se dá pelo estabelecimento de uma mesma língua.Isto pode parecer óbvio, tendo em vista que só através da comunicação linguística se faz possível um convívio social.Nesse sentido, a unificação pela palavra surge despertando o homem e sua consciência, ela agrega valores. Temos na ilíada uma sériede valores posto para uma cultura consolidada, nela o exemplo de homem é o guerreiro, para ele são atribuídos valores como a honra, a disciplina, a glória, a justiça, etc.
Percebe-se, perante o exposto, que a diversidade cultural do período pré-homérico, vai, paulatinamente, no processo histórico, transformando-se, unificando-se e culminando em uma cultura comum, única, homogênea, etc. nela estásubmersa o poeta sendo a cultura do seu tempo e aque o subsidia no canto das epopeias. Nelas agregam-se valores por meio das palavras, “Palavra de graça, chamamento do ser, chamamento ao ser, a primeira palavra, portanto, é essência que institui a existência, que provoca a existência” (MONTEIRO, 2005, p. 53.Grifei).
Uma vez que a língua comum passou a existir, a palavra provocou a existência, a tradição passou a se formar naquela sociedade. A epopeia por si já significa esse testemunho já que elas são narrações dos feitos heroicos,gloriosos fatos de um passado e que, nesse caso, foi herdado pelo poeta. A esse respeito:
Homero é certamente um começo e não o é apenas para o nosso ver. O século de Homero, que pensamos com fundamento, ter sido o VIII, franqueou caminho às forças que haviam acumulado nos tempos obscuros, para um desenvolvimento que por toda a parte favoreceu o despontar de nova vida (LESKY, 1995, p. 29).
A herança da cultura pré-homérica chegou até ao poeta devido a forte tradição do canto transmitida de pai para filho ou do mestre para o aprendiz, “mas isto é tudo: não conhece um texto preexistente e cria sempre de novo sua canção” (LESKY, 1995, p. 33. Grifei), e nesse sentido que Homero é um começo.
Salutar é o ponto que a sociedade, desde os tempos anteriores ao poeta, já havia consolidado uma aristocracia. Como dito, as guerras eram constantes, nelas geraram-se lideranças e, posteriormente, quem melhor, nos tempos de paz, para governar as cidades? Impossível era retirar a legitimidade dos guerreiros para o governo. Eos filhos destes nasceram no governo e com seus pais aprenderam a liderar, os filhos dos outros homens por seus pais foram habituados a obedecer. Essa é a cultura que o poeta canta. É a semente da servidão.

3 O NASCIMENTO DA POLÍTICA DA SERVIDÃO
Por que na época de Homero já era comum que homens servissem uns aos outros? Vimos que com o sincretismo gerado pela cultura dos povos indo-europeus com os habitantes nativos da Península Balcânica levou ao nascimento da cultura grega. Nesse sentido, Homero ao escrever Ilíada e posteriormente a Odisseia o faz tendo como contexto uma cultura uniforme, definida e na qual a sociedade já estáorganizada, tendo por liderança uma aristocracia, descendente dos guerreiros.O palco já está montado para o espetáculo: o nascimento da política da servidão.
A política da servidão vem justificar a questão da legitimidade dos que governam a cidade. A cultura da sociedade homérica pode nessa questão ser definida como cultura da vergonha, isto é, na qual o senso coletivo impera e sanciona o comportamento individual. Consolidando esse entendimento temos “a vergonha se configuraria, então, como reação à crítica dos demais, para vivenciá-la seria necessária a presença ou ao menos a suposição de uma plateia; que não somente assiste, mas julga, avalia.” (RIBEIRO; LUCERO; GONTIJO, 2008, p. 130). Desta forma, o senso de uma coletividade que vigia os atos dos guerreiros e heróis para que estes não contrariem a ordem tecida pela Moira (representante do destino).
A essa cultura da vergonha vem se opor a cultura da culpa, na qual:
Por outro lado, na culpa todo o acento recai sobre a interiorização de uma consciência moral, e nesse sentido, ela prescinde da crítica alheia para ser experimentada, bastando para isso que determinado ato não esteja em sintonia com a imagem que alguém faz de si próprio, daí o sentimento de culpa ser aliviado por meio da confissão da falta de moral, expediente ineficaz, e por conseguinte, ausente nas culturas da vergonha. (RIBEIRO; LUCERO; GONTIJO, 2008, p. 130. Grifei).
Nesse quadro, vamos focar análise nos desdobramentos que a política da servidão, essa cultura da vergonha que acompanha os homens desde as suas origens mais primitivas, é trabalhada nas epopeias. Temos que o homem só se libertará quando houver a tomada de consciência de que a cultura lhe sufoca, habituando-o a servir. Forma-se uma ideologia legitimadora da sociedade que transcende até os nossos dias.
Duas ao nosso ver, são os desdobramentos dessa ideologia: o mito que se manifesta pela servidão dos deuses e o herói que diante da ordem posta, revela o dilema que os homens sofrem. Vejamos cada uma delas.

3.1 O MITO E A SERVIDÃO NO OLIMPO
Para Alberto Branco “Dá-se o nome de mitologia grega ao conjunto de narrativas maravilhosas e das lendas de todo o gênero que os textos e os monumentos figurados demonstram e se propagam nas regiões de língua e influência gregas” (BRANCO, 2005, p. 60). Mitos, narrativas e lendas aparecem como uma forma de explicação dos fenômenos os quais não era possível estabelecer um nexo racional, por isso sendo atribuídos causas e efeitos a algo sobrenatural. Nesse sentido, podemos citar como exemplo a chuva, o raio, reproduçãoda espécie, o destino, etc. Podemostentar esgotar o conceito de mito nos dizer de Regina Monteiro:
Os mitos retratam as diferentes situações de vida, as relações entre as pessoas, entre o indivíduo e a sociedade e a natureza. Analisando um mito, é possível entender a realidade social de um povo (sua economia, sistema político, costumes e crenças), toda a experiência adquirida pelos homens em sua caminhada histórica está contida nos mitos em narrativas metafóricas (MONTEIRO, 2005, p. 54. Grifei).

Partindo da ideia de que, análiseda sociedade, de uma determinada época, pode ser feito em conformidade com seus mitos. Temos nas epopeias gregas toda uma hierarquia dos deuses gregos que muito tem a contribuir para entendermos as relações políticas desenvolvidas naquela na polis grega. Vejamos uma passagem da Ilíada a esse respeito:
Numa gruta acha a Tétis e as Nereidas,
Chorando o exímio Aquiles, n’alma Tróia
Longe da pátria a falecer fadado:
“Vem, Tétis, que te chama o Onipotente.”
A argentípede acode: “Que pretende?
Ir aflita me pesa à etérea corte;
Mas Júpiter o manda, é quanto basta”(HOMERO, 2009, p. 429. Grifei).
A passagem da Ilíada acima transcrita deixa evidente quem é o todo poderoso dos deuses olímpicos: Júpiter (Zeus). A organização política do Monte Olimpo se dá centrado na figura desse deus o qual é pai e irmão da maior parte das divindades. Assim a históriade Zeus é fundamental a nossa interpretação para entendermos como a servidão se manifesta no Olimpo.
Narra Thomas Bulfinch (2006) que  Zeus Era filho de Saturno (Crono) e Reia (Ops), que pertenciam à raça dos Titãs, filhos da Terra e do Céu que surgiram do Caos. Apesar das controvérsias em torno da figura de Saturno, conta-se que este tinha por hábitodevorar seus filhos. Zeus, contudo, escapou a esse destino e quando cresceu se casou com Métis (Prudência), a qual preparouuma porção para Saturno, que o fez vomitar os filhos que engolira. Depois disso Zeus derrotou seupai e os demais titãs foram punidos, como Atlas que teve que sustentar o firmamento.
Diante disso, podemos dizer que uma dívida estabeleceu a hierarquia no Olimpo, visto que Zeus salva seus irmãos, Netuno (Poseidon) e Plutão (Hades), que estavam presos na barriga de Saturno e ao derrotar o pai, torna-se senhor dos deuses e dos homens.  Essa ordem do cosmo é o mito legitimador do poder de Zeus.
Persistindo na análiseda figura do governante supremo, temos a história fantástica de “Minerva, a deusa da sabedoria, era filha de Júpiter. Dizia-se que havia saído da cabeça do pai, já madura e revestida de uma armadura completa.” (BULFINCH, 2006, p. 147. Grifei). Por que a deusa da sabedoria saiu da cabeça de Zeus?
Sabemos que é um mito, pelo que já foi dito, contém um significado com a realidade, especificamente, da realidade dos governantes gregos a qual mostra governantes não tão prudentes ou preocupados com seu povo, exemplo disso era o fato de as polis gregas viverem assoladas pela Tirania.
Finalizando, podemos concluir que Júpiter esta longe da perfeição, realçando humanização do deus grego, um governante que falha sendo ainda omisso com seus “subordinados” como é um episódioda Ilíada em que Hera seduz Zeus e Heitor Acaba gravemente ferido.

3.2 HERÓI: entre Deuses e Homens
Os heróis são os modelos de homens a serem seguidos, nesse caso, tanto faz ser ele grego ou troiano. Em diversas passagens da Ilíada temos as qualidades destes bravos descritas: honra, justiça, lealdade, amor, etc. virtudes essas típicas do guerreiro. Natural que acompanhando sua natureza humana eles agem por ódio, vingança, traição, etc. provocando no ouvinte do canto uma reflexão sobre suas atitudes, reforçando o dever de ser virtuoso:
Através dos exemplos dados pelos poetas, o homem grego vai moldando a sua própria personalidade e a de sua sociedade como um todo. Essa tradição da tomada paradigmática do mito como recurso para modelar as ações dos homensem seu convívio social e em atitudes individuais é intrínseca ao espírito grego e ocorre não apenas entre ospoetas e prosadores, mas também em meio afilosofia (SOUZA. 2007. p. 202).
Criam-se os estereótiposdo homem que servem para moldar o grego.Este homem é apresentado como um ser dual e mortal, mas busca a imortalidade nos grandes feitos, mesmo que isso lhe custe àvida como é o caso de Aquiles o qual ao vingara morte de Pátrocloglorificando-se no campo de batalha mesmo sendo advertido que se persistisse na sua empreitada acabaria numa morte prematura.
Outra situação interessante éa que ocorre entre deuses e heróis. Essa relação para LESKY (1995) se dá por três antinomias: proximidade e distância, favor e crueldade e arbitrariedade e justiça. Para o primeiro par, temos na Ilíada, deuses muito em contato direto (Próximo) com os homens e seus destinos, exemplo, são as constantes mensagens enviadas pelos deuses ou quando eles aparecem na forma humana, mas contrariamente horas em que esses deuses se mostram ausente, omissos, distantes. Um episódio, desse fato,é a morte do filho de Zeus Sarpédon, Juno (Hera) adverte que se Júpiter salvar o seu filho todos os demais deuses se acharam no direito de intervir na batalha.
O segundo par de antinomias, favor e crueldade, afirma que os deuses fazem favores aos seus favoritos, como quando afastamo perigo. Já a crueldade se dá quando os deuses colocam armadilhas para os heróis, um ótimo exemplo, équando Atena engana Heitor, fato que culmina com a morte do herói.
Por último, o terceiro par de antinomias, arbitrariedade e justiça, isso tange a moralidade dos deuses. Muitos casos, os deuses se tornam arbitrários, como Hera que com ódionão mediria esforços para devorar Príamo e os Troianos, por isso é censurada por Júpiter. Isto também serve para mostrar a Justiça do governante supremo. Referente a esse último par, focando apenas sobre os homens, dirá Aristóteles séculos mais tarde:
Parece que o injusto seja tanto o transgressor da lei quanto quem quer levar vantagem e quanto o iníquo. Sendo assim, é evidente que o justo também será aquele que respeita a lei e que é equitativo. Por isso, o justo será aquele que age de acordo com a lei e que é imparcial, enquanto o injusto será aquele que não age de acordo com a lei e que é iníquo (ARISTÓTELES, 2005, p. 48 e 49. GRIFEI).
A questão do herói, portanto, se dá nessa complexa relação com os deuses, eles devem fazer na medida de suas forças a superação de obstáculos. São, assim, modelos de homens, isto é, vitrines de valores da cultura grega. É por esse motivo que Homero é considerado o educador dos gregos, mas esse ponto será aprofundado no próximo tópico.

4 A EDUCAÇÃO E O HÁBITO
Ao longo desse trabalho, viemos abordando como a ideia da servidão nasce e se desenvolve na cultura grega. Na formação da sociedade homérica, dizíamos, houve um sincretismo de diversas culturas através da guerra. O resultado foi o aparecimento da cultura grega, homogênea, na qual ficou estabelecido que os vencedores do entrave se tornassem os senhores da sociedade.
Mas tudo deve terminar um dia, o soberano, a classe aristocrática ou quem detenha poder, em última análise, um dia vão morrer. Pensavam, Se a morte é inevitávelcomo ficaria a sua família? Estariam abandonadas as garras de seus inimigos políticos? Como preservar o interesse do grupo? Como garantir a perpetuação do poder para seus descendentes?
A educação, nesse sentido, parece ter sido a solução a esses questionamentos, a dominação do pensamento era muito mais vantajosa, pois afastava a guerra e a disputa pelo poder. Dirá Boétie que “o sultão turco percebeu que os livros e a instrução dão mais que qualquer outra coisa aos homens o bom senso e o entendimento para reconhecerem a tirania.” (BOÉTIE, 2009, p. 49) desta forma, se a educação fosse controlada, o controlador poderia manter o controle sobre a sociedade, nesse sentido, bastaria habituar os homens a obedecer para a família perpetúa-se no poder.
Diante disso, importante é ressaltar que “Os poemas Homéricos eram transmitidos oralmente, os versos de Ilíada e da Odisséia foram cantados pelos aedos e pelos poetas, geração após geração, reproduzindo os valores fundamentais para aquela comunidade” (AMARAL; MELO; MURARI, 2009. Grifei). Na Ilíada percebemos isso com clareza, como visto, nelaos valores fundamentais do homem são o do guerreiro, honra, glória, disciplina, etc. é por esse motivo que Homero é considerado o “educador da Grécia” todos os filhos dos aristocratas eram educados com os seus cantos.

5 CONCLUSÃO
A ideia da servidão voluntária, nos limites traçados por Boétie, afirma que a população é condescendente com o jugo. Isso ocorre por vários motivos, mas essencialmente pelo hábito. Ao se buscar uma pequena história da servidão tentamos analisar o quão antigo e profundo é essa ideia. A escolha pela Ilíada de Homero deu-se pela antiguidade, significado e influência que esta obra tem para a cultura do homem ocidental.
Nada melhor que estudarmos a cultura grega, considerada o berço da nossa civilização, para traçarmos um mapa da origem do pensamento político da servidão. Apesar de na contemporaneidade ocidental a maioria dos países viver em um Estado Democrático de Direitos e não mais em tiranias ou aristocracias, o que deveria significar cidadãos conscientes politicamente de seus direitos e, fundamentalmente, seus deveres, a realidade se mostra contrária.
A educação é “uma faca de dois gumes” nesse processo: pode ser usada para libertar ou escravizar o homem. Pelo o que aqui foi exposto, ela libertaráse for capaz de formar sujeitos conscientes, críticos e atuantes. Ela escravizará, se for usada para justificar a ordem posta, avessa a crítica evoltada para a técnica. É necessário criticar o hábito, pois na sua irracionalidade estáa semente da servidão.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Roseli Gall do Amaral; MURARI, Juliana Cristina e PEREIRA, José Joaquim Melo. Objetivos e características da educação homérica: uma reflexão sobre o conceito de Areté. Disponível em http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2562_1928.pdf. Data do acesso: 19/11/11.
ARISTÓTELES.Os modos e os objetos da justiça. In. A idéia de justiça da Platão a Rawls. SebastianoMaffettone e Salvatore Veca (orgns.). Tradução Karina Jannini. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 47 a 83.
BOÉTIE, Étienne de la. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução Casemiro Linart. Vol. 304 (Coleção obra-prima de cada autor). São Paulo: Martin Claret, 2009.
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução Luciano Alves Meira. Vol. 45 (Coleção obra-prima de cada autor. Série ouro). São Paulo: Martin Claret, 2006.
BRANCO, Aberto Manuel Vara. A mitologia grega, uma concepção genial produzida pela Humanidade: os condicionantes religiosos e históricos na civilização helénica. Disponível em http://repositorio.ipv.pt/handle/10400.19/424. Data do acesso: 15/11/11.
Dicionário Aurélio Online. Disponível em: http://74.86.137.64-static.reverse.softlayer.com/. Data do acesso: 19/11/11.
GONTIJO, Eduardo Dias; LUCERO, Ariana e RIBEIRO, Lucas Mello Carvalho.O ethos homérico, a cultura da vergonha e a cultura da culpa. Psyché, Vol. XII, Núm. 22, 2008 p. 125 a 138. Universidade de São Marcos. Disponível em http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?Cve=30711292010. Data do acesso: 16/11/11.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Manoel Odorico Mendes. Saraiva, 2009. Disponível em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf. Data do acesso: 10/11/11.
LESKY, Albin. História da literatura grega. Tradução de Manuel Losa. Edição Fundação CalousteGulbenkian. Lisboa, 1995. p.1 a 112.
MELO, José Joaquim Pereira; MURARI, Juliana Cristina Faizano. Os poemas clássicos como fenômenos culturais estruturadores do antigo conceito grego educacional. Disponível em http://alb.com.br/arquivomorto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem12/COLE_2942.pdf. Data do acesso: 26/11/11.
MONTEIRO, Regina Clare. O símbolo na Literatura: um estudo sobre o conteúdo arquétipo de textos literários.Revista da educação, n° 8, vol. VIII. Campinas  AESA, 2005. Disponível em: http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/reduc/article/viewFile/177/18. Data do acesso 16/11/11.
SOUZA, Jovelina Maria Ramos de. A poesia grega como paidéia. Disponível em http://www.principios.cchla.ufrn.br/21P-195-213.pdf. Data do acesso 17/11/11.


[1]Artigo apresentado no I Colóquio de Direito e Literatura: A Leitura das Imagens do Direito. Coordenado pelo Professor Doutor Luiz Otávio Pereira. Realizado nos dias 01 e 02 de dezembro de 2011, no auditório do POEMA – Programa Pobreza e Meio Ambiente/ Universidade Federal do Pará.
[2]É acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará. Também é monitor das disciplinas Introdução a Ciência do direito e Ética Jurídica.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

I COLóQUIO DIREITO E LITERATURA: a leitura das imagens do direito



PROGRAMAÇÃO

Dia 01/12
8h 30m – Credenciamento e Preparação
9h – Painel inaugural –DESVELANDO AS MÁSCARAS DOS DIREITOS: as idéias de Marx na literatura. - Luiz Otávio
10h –Ana Carolina – Tema a confirmar
11h – “O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO: um retrato ficcional do paradigma do mundo jurídico moderno”. – Victor Russo
14h 00m – "A MULHER E O DIREITO NA LITERATURA: evoluções do gênero" – Vitor Melo
15h 00m – “A OUTRA FACE DO MERCADOR DE VENEZA” – Vitor Marcellino
16h 00m – “DIREITO NA LITERATURA DE LARANJA MECÂNICA” – Manoel Rufino
17h 00m – “O DIREITO EM BUSCA DA REPARAÇÃO”- Ana Laura Figueiredo

Dia 02/12
9h – “DITIRAMBOS JURÍDICOS EM LAVOURA ARCAICA”. – Nathalia Peixoto
10h – “PEQUENA HISTÓRIA DA SERVIDÃO DOS DEUSES E HERÓIS” – Gustavo Pereira
11h – “REVOLUÇÃO DOS BICHOS: uma análise jusliterária das relações de direito e poder” – Karl Marx e Ciro Brito
14h – Filme: O JULGAMENTO DE NUREMBERG – Comentários: Prof. Dr. Antonio Maués.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

Ismael Oliveira de Souza
Mariana Barbosa de Sousa

A justiça é a vingança do homem em sociedade,
como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem.
Epícuro

1 A CONDIÇÃO NATURAL DA HUMANIDADE

Os homens são iguais por natureza no que concerne as faculdades do corpo e da mente. E, se por vezes, percebe-se diferenças, elas não são tão consideráveis. Aristóteles (2007) sustenta essa proposição quando fala de virtudes. Ele afirma que a todos os homens a natureza confere capacidade de apreenderem virtudes. Os benefícios que um reivindicar, o outro poderá assim o pretender, e para alcançar tais benefícios, eles terão a mesma esperança e a mesma atitude de lançar-se a disputa, se preciso for.
Deste modo, a natureza humana apresenta três causas principais de contenda entre os homens: a rivalidade, a desconfiança e o orgulho. A rivalidade leva os homens a recorrerem à violência para tornar-se senhores das coisas que os cercam. A desconfiança aparece para a defesa daquilo que foi conquistado. Por fim, o orgulho move os homens à contenda por meio de frivolidades, como por exemplo, uma divergência de opiniões ou qualquer outro sinal de falta de estima.
Enquanto, em Platão (2000) e Aristóteles (2007) a virtude maior está assentada na justiça; em Agnes Heller (1998), na razão em condições de liberdade; para Hobbes a virtude maior assenta-se na paz, cuja condição de guerra é contrária. Assim, destacam-se as paixões por meio das quais os homens anseiam a paz: o medo da morte, o desejo de coisas necessárias a uma vida agradável e a esperança de obtê-las com a própria atividade engenhosa.

2 A PRIMEIRA E A SEGUNDA LEI NATURAL

O Direito Natural, jus naturale, é a liberdade que cada um tem de, segundo seus próprios juízos e razão, fazer o que estiver ao seu alcance para a conservação de sua própria natureza. Seguindo essa linha de pensamento, o principal dos bens é a autoconservação (ABBAGNANO, 2000). Entende-se por liberdade a ausência de obstáculos a uma determinada ação, o que não quer dizer que esta é totalmente neutralizada quando da presença de barreiras. Nesse sentido os homens têm direito a tudo, o que, por criar um clima de insegurança, os coloca em uma condição de guerra de todos contra todos. Nesse panorama, surgem as leis naturais, regras gerais descobertas pela razão que proíbem ou autorizam os homens a determinadas ações.
A primeira e fundamental lei natural ordena que os homens busquem a paz e a defendam com todos os meios que dispuserem, inclusive usando a guerra se assim tiver quer ser. Quanto à busca pela paz por meio da guerra, ela é identificada nas concepções de Friedrich Nietzsche (2005) como sendo um problema filosófico, a qual pode-se destacar a manifestação de Platão (2000, p. 21): "quanto aos homens, se se lhes faz mal, se tornam piores em relação a perfeição humana".

Como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros? (NIETZSCHE, 2005, p. 15)

Da lei natural fundamental, com a qual se ordena que os homens busquem a paz, deriva a segunda lei, segundo a qual os homens devem renunciar, isto é, transferir os seus direitos à medida que outros também estiverem dispostos a fazê-lo, quando acharem necessário à paz e à própria defesa.

3 TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS: contratos, pactos e doações

A transferência de direitos constitui ato voluntário. A pessoa que a faz sempre objetiva um bem para si, ainda que seja apenas ser vista como uma pessoa bondosa e magnânima. Por isso, há direitos que não se transfere, uma vez que se assim for feito, nenhum bem será alcançado, como por exemplo, o direito de autodefesa. Aquele que renunciá-lo, nisso não encontrará bem algum. De acordo com a ênfase que se dê aos envolvidos na transferência e no tempo de sua realização, surgem os contratos, os pactos e as doações.
Os contratos vêm a existência quando há uma transferência recíproca de direitos. Seguindo o modelo de Hans Kelsen: quando A renuncia o direito X, em troca do direito Y que B renunciou. O contrato nasce do poder da A sobre X e da necessidade de B sobre tal direito, e vice-versa.
Os pactos ou convenções são celebrados mediante transferência recíproca de direitos. Porém, um dos contratantes, de antemão, cumpre sua parte, e o outro a cumprirá posteriormente. No filme Motoqueiro Fantasma é celebrado um pacto entre Johnny Blaze (Nicolas Cage) e o demônio Mefistófeles. O demônio restitui a saúde do pai de Johnny em troca de posteriormente resgatar sua alma.
As doações são transferências não recíprocas, mas que ainda sim, objetivam a um bem, como no caso daquele que doa algo a alguém buscando ser bem visto entre seus companheiros. Aqui, apenas uma pessoa renuncia direito. Portanto, a doação depende da generosidade do doador, que renuncia o seu direito porque quer.

4 AS OUTRAS LEIS NATURAIS

A partir da lei natural fundamental, que ordena os homens que busquem a paz, sucedem as demais leis, sendo que estas podem derivar umas das outras.
Da lei natural que obriga aos homens transferir direitos para manter a paz, segue uma terceira: que os homens devem manter os pactos que fizerem. O homem que cumpre essa lei é chamado de justo, enquanto seu oposto, de injusto. Para Platão (2000), os homens pactuam e, assim, estabelecem leis para não cometerem nem sofrerem injustiças. Logo, aí está a gênese e essência da justiça.
Assim como a justiça depende de um pacto, a gratidão depende de uma doação. A quarta lei ordena que um homem que recebe um benefício de outro por pura graça deve esforçar-se para que o doador não se arrependa da doação que fez. A infração a esta lei é a ingratidão.
A quinta lei natural é a complacência, isto é, que cada um deve esforçar-se para adaptar-se aos outros. O cumprimento dessa lei se encaixa no conceito de ética de Nelson Brissac (2007), pois suscita deixar as pessoas serem como elas são respeitando-as. O homem que não cumpre esta lei constitui um obstáculo para a sociedade. Ele é o insociável, bem como seu oposto é o sociável.
A sexta lei está assentada no perdão, o ato de conceder a paz: como prévia garantia para o futuro, um homem deve perdoar as ofensas passadas daqueles que, arrependidos, lhe pedirem perdão.
A sétima lei natural ordena que nas vinganças, os homens devem olhar não para a grandeza do mal passado, mas para a grandeza do bem que dele deve nascer. Esta lei, bem como parte da lei fundamental, também passa pelo problema filosófico acima elencado. No entanto, percebe-se em Hobbes o que seria o zigoto do período humanitário do Direito Penal. A violação desta lei natural é a crueldade.
Considerando que sinais de ódio e de desprezo são sementes da guerra, a oitava lei natural ordena que ninguém manifeste ódio ou desprezo por ninguém, seja com atos, palavras, comportamentos ou gestos. O indivíduo que a esse preceito não segue é o ultraje.
A natureza fez os homens iguais. Ainda que uns estejam mais aptos que outros a determinada atividade, como salientou Aristóteles (2007), cada um deve reconhecer o outro como seu igual por natureza para que todos possam estar em um estado de paz. Esse é o preceito da nona lei. A desobediência a ela é a soberba. Outra lei decorre da anterior e ordena que quando os homens entrarem em estado de paz, ninguém deve exigir para si próprio aquilo que não gostaria que fosse concedido aos outros. Os moderados obedecem a essa lei, os arrogantes a violam.
Ainda que haja uma inclinação ao cumprimento dessas leis naturais surgem duas questões concernentes a ação humana: questão de fato, se foi realizada ou não; questão de direito, caso realizada, se foi ou não contra a lei.
Portanto, faz parte da lei natural que quando houver uma controvérsia, os homens submetam o seu direito ao julgamento de um árbitro. Se assim não o for os litigantes julgarão em vista do próprio bem e a controvérsia permanecerá.
Essas são as leis naturais que ditam a paz como meio de conservação dos homens em sociedade. As leis analisadas não formam um conjunto fechado, uma vez que existem outras coisas que levam a destruição dos indivíduos, como a embriaguez e todos os tipos de intemperança. As leis naturais obrigam em foro interno, isto é, deseja-se que sejam realizadas, mas nem sempre em foro externo, ou seja, são realizadas. Elas são imutáveis e eternas, e se concentram numa fórmula concisa: não fazer a outrem aquilo que não gostarias que fizessem a ti mesmo.
O presente trabalho contribuiu para a formação do pensamento jurídico, a partir da observação da Ética, no sentido arrolar as condições necessárias para que os homens evitem problemas que têm reflexo na via judicial, ou se eles aparecerem os homens pensarão no convívio em sociedade, e se colocarão no lugar uns dos outros, buscando a resolução de controvérsias por meios pacíficos. É bem certo que a sociedade hoje está distante disso.


REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Ética. In. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 380-387.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. Ed. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007.
HELLER, Agnes. A dissolução do conceito ético-político de justiça na modernidade. In. Além da justiça. Trad. Savannah Hartmann. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1998, p. 111-144.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. Ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Ver o invisível: a ética das imagens. In. Ética. Adauto Neves (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 425-453.
PLATÃO. A república. 2. Ed. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000.
ROULAND, Norbert. As brumas do direito. In. Nos confins do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 01-29.

I COLÓQUIO DE DIREITO E LITERATURA

O Centro Acadêmico de Direito Edson Luis, tem a honra de convidar a comunidade acadêmica à atividade desenvolvida pelo projeto de extensão "Direito no cinema: literatura, arte e cultura" convida toda a comunidade acadêmica para o "I Colóquio - Direito e literatura: A leitura das imagens do direito", a ser realizado nos dias 1 e 2 de dezembro, no Auditório do POEMA/UFPA.
O estudo do direito visto através da ótica da literatura traz uma "nova" opção de leitura das imagens dos direitos, mostrando uma faceta diferente da usualmente mostrada no cinza das salas de aula, contribuindo assim com o fazer direito. O Colóquio contará com a exposição de trabalhos dos discentes que participaram da disciplina Direito e literatura, finalizando com a exibição dos filme O Julgamento de Nuremberg, comentado pelo Prof. Dr. Antônio Maués

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

DITIRAMBOS JURÍDICOS EM LAVOURA ARCAICA

Gustavo Freitas
Nathalia Peixoto



1 INTRODUÇÃO: as folhas

A divisão deste trabalho foi feita a sugerir a imagem de uma árvore (Folhas, Tronco, Ramo torto e Raízes) a justificativa e o prolongamento de uma imagem transmitida no filme de a família ser como uma árvore. Assim a introdução será as folhas, por estarem no topo da árvore lembram o superficial, o Pai é o “Tronco” pelo fato de a história girar em torno da lei moral do Pai em conflito com o “direito da impaciência” de André, o filho pródigo, por isso mesmo, André assim como a Mãe, Ana e Lula são o “ramo torto” marcado por uma cicatriz e por fim nossas conclusões são apresentadas nas “raízes” lembrando a profundidade e o debate que queremos levantar.
Devido à complexidade do trabalho, aqui, concentraremos nossa análise sobre as personagens centrais que, sem dúvida, são o Pai e André. Representam, respectivamente, a ordem e o caos, direito e revolução, apolíneo e dionisíaco – Da obra O nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche.
O enredo do filme “Lavoura Arcaica” (Filme de Luiz Fernando Carvalho, baseado na obra “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar) conta a história da volta de um filho (André) para casa, onde houve uma relação incestuosa com uma das irmãs (Ana). Na primeira parte do filme, Pedro, o irmão mais velho, vai buscar André no quarto de pensão onde este se encontra após ter saído de casa. Após o regresso, na segunda parte, o pai toma conhecimento do incesto e sugestivamente, como grande parte das ações do filme, mata Ana.
Não é uma narrativa linear, assim na primeira parte do filme, André recolhe recordações misturadas no tempo e no espaço. A narrativa se faz em primeira pessoa, colocando-se o narrador no ponto de vista de André e realizando um caminho de volta que se dá tanto no sentido espacial (da pensão, longe da família, na direção da casa) como também no sentido temporal.
A narrativa acompanha esse percurso da memória, deixando-se entrecortar pela conversa entre Pedro e André e a confissão deste sobre a relação incestuosa com Ana. A narrativa aponta para um universo primitivo, marcado desde o início pelo seu nome – Lavoura Arcaica - ; remetendo a sua origem, sua história e estrutura social.

2 O TRONCO
O ambiente de Lavoura Arcaica é o de uma comunidade rural, afastada das grandes cidades, é nesse local onde a lógica dos grandes centros, suas instituições político-jurídicas permanecem completamente distantes do homem interiorano, é o espaço onde o direito positivo perde toda sua eficácia. Em seu lugar vemos emergir o direito consuetudinário, o direito confunde-se com a moral, predomina o direito da família, a lei proferida pelo Pai.
Personagem fundamental, no filme, o Pai e sugerido como o “Tronco” daquela família, a lógica daquela sociedade, os filhos devem apagar o próprio desejo em função da Lei e do desejo do Pai. É ele quem delimita para a criança o campo social, apresenta o mundo exterior e suas leis. Os filhos devem ser como ramos desse tronco, ser uma parte do corpo, devem aceitar sua versão da história transmitida nas parábolas na mesa das refeições.
As parábolas do Pai são fonte de direito, simbolizam o domínio do Pai sobre os filhos e sendo que longe dele não há possibilidade de sobrevivência, como na parábola do faminto:
Uma vez o faminto foi ao castelo do soberano dos soberanos para ser saciado. Na entrada, os guardas do castelo falam que bastava se apresentar ao soberano para ter tudo que desejava. Ao entrar, o faminto só encontra limites, passou de aposento em aposento, todos de paredes altas, mas despojadas de qualquer mobília. Finalmente, vê-se diante do soberano, que lhe oferece comidas e bebida invisíveis. O faminto as aceita e ambos comem e bebem dessa forma. Após bastante tempo nesse ritual o soberano fala que o faminto será saciado por demonstrar ter a virtude das virtudes a paciência.
Assim, próximo a ele ninguém se sentirá inseguro ou desamparado. O Pai é uma majestade rústica. No seu reino a razão, o equilíbrio, a moderação e a paciência são as virtudes do rei e por extensão devem ser as virtudes dos filhos/súditos.
Sobre a influência da tradição socrática, segundo a interpretação de Nietzsche, podemos entender que o Pai buscava a clareza e a verdade o que tornaria a vida exemplarmente vivida, virtuosa. Portanto, no qual seria dissolvido tudo aquilo que era disforme, obscurecido ou simbólico, tratava-se da busca pela simplicidade estilística, que é exatamente o contrário das palavras proferidas por André: de uma profundidade muitas vezes obscurecida, avessa a objetividade, no qual suas falas tomam o lugar do próprio sentimento, “André denuncia a impossibilidade de equilíbrio” (RISSIN, p.5). Para Sócrates temos um destino: que toda vontade humana tem um sentido racional, o bom é o racional, logo ninguém quereria o mal conscientemente sabendo que se trata do mal. A vida se consistiria na busca do bem comum que só se daria depurando o bom do mau, esta depuração consistiria na própria felicidade.
O pensamento do Pai constitui-se em pensamento lógico, racional de uma clareza ofuscante, capaz de esmagar ou subjugar os pensamentos dos filhos e da Mãe. Representa, o ápice de uma razão apolínea é levada à cena a exatidão da logicidade que apesar de frutífera mãe de paradoxos aborta tudo de potencial pluralidade. Estima-se a clareza.
A crítica de Nietzsche se volta mais especificamente ao método de apreensão da ciência, que baseado na falsa busca pela verdade indiscutível chega ao patamar de norma, resultando num estado social de rebanho, tornando a regra de vida o refúgio e a proteção e não a estratégia e a ação, isto é, mais claramente, o comodismo.
A finalidade é a busca de segurança e de tranqüilidade, sob o preço do apagamento de toda a diferença, a inda que à custa do esvaziamento da própria regra para que, sob a forma conceitual possa abarcar indistintamente uma pluralidade de casos, irredutível em singularidade em sua única fórmula. (MELO, 2004, p.10).
Ficamos diante também da manifestação do egoísmo socrático, porque é quase exclusivamente inclinada para os métodos científicos de apreensão da realidade, mesmo diante do alto grau de acientificidade. Tudo que é novo, que é vanguardista, que é poeticamente visionário é entendido como mau por fazer uso indevido do tradicional, fazendo cair no esquecimento a força criadora do espírito humano. Porque só sendo injusto e mentiroso para não obedecer a regra, concluindo assim que “a eliminação do incomensurável é igualmente escopo do esclarecimento” (MELO, 2004, p.11).

3 RAMO TORTO: André e a desordem, o apolíneo e o dionisíaco
A possibilidade de desenvolvimento da arte está relacionada à pulsão divina do apolíneo-dionisíaco, trata-se de uma batalha infinita com momentos periódicos de reconciliação. O apolíneo é arte do figurador plástico, trata-se do universo artístico do sonho no filme, podemos fazer uma analogia com a lembrança dos esconderijos de menino no bosque, na sua mais bela aparência onírica das artes plásticas. O deus délfico exige de seus seguidores a ponderação, a medida, o autoconhecimento aliados a beleza estética, no qual o excesso e a desmedida tratam-se de pontos exteriores a esfera de adoração apolínea.
Apolo então interpretaria o dilacerar do fígado de Prometeu pelo abrute como conseqüência de sua desmedida sabedoria. Porém, o Apolo da austeridade, o Apolo da resistência ao caráter titânico não conseguia dissimular o quanto de titânico, de bárbaro era recôndito em si. E a austeridade apolínea rompia as barragens do artificialmente represado comedimento transmutando-se na beberagem mágica do dionisíaco. Dionísio, o deus da arte não figurada (música) transforma a estridência da desmesura do grito de liberdade de André, “a impaciência também tem seus direitos”, “em prazer, dor e conhecimento” (NIETZSCHE, 2007, p.38), pois é a miséria que filosofa. “O desmedido revela-se como verdade, a contradição, o deleite, nascido das dores, falava por si, desde o coração da natureza” (NIETZSCHE, 2007, p. 38).
Assim o era a existência para os gregos pré-socráticos, no qual até o lamento do filho-esposo de Jocasta transfigurava-se em hino de louvor à vida, eis aqui o motivo da morte do herói, pois para o indivíduo sentir-se digno de glorificação precisava inserir-se num plano divino superior de vontade de existência, assim as imagens dos deuses habitantes do Olimpo era a própria veneração da imagem da civilização grega. Aqui não nos fala a moralidade cristã, o dever, sequer a misericórdia, “aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz é divinizado, não importando que seja bom ou mau” (NIETZSCHE, 2007, p.33). A nossa realidade tão lacunarmente, tão abissalmente obscurecida só pode tornar-se realmente digna de ser vivida através do caráter divinizatório das artes.
Há pessoas que, por falta de experiência, ou por embotamento de espírito, se desviam de semelhantes fenômenos como de “moléstias populares” e, apoiados no sentimento de sua própria saúde, fazem-se sarcásticas ou compassivas diante de tais fenômenos: essas pobres criaturas não têm, na verdade, idéia de quão cadavérica e espectral fica essa sua “sanidade”, quando diante deles passa bramando a vida cadente do entusiasta dionisíaco. (NIETZSCHE, 2007, p.27-28).

4 CONCLUSÃO: as raízes
A moralidade para Nietzsche se baseia na tradição, porém a tradição origina-se num primeiro longínquo momento na prática, uma ação que poderia ser considerada útil ou nociva, que com o passar dos anos passou a fazer parte da natureza, essa prática por afastar a sensação do medo e criar em nós a sensação da segurança eleva-se a autoridade de norma.
A moral resume-se, portanto na obediência, Para Nietzsche “o homem é a mais medrosa das criaturas e devemos compreender a moral a partir dessa sensação básica. O que suscita medo? A resposta é clara para o autor: o outro” (MELO, 2004, p.59), a uma norma, a obediência por medo da improvisação, por temer-se a liberdade. A segurança é vista indiscutivelmente, desde tempos imemoriais, como a divindade suprema. Nietzsche então passa a criticar o fato de que a moral perdeu, decorrido o longo tempo, o contexto com a sua experiência, motivo originário e passam a “valer não pelo que significaram enquanto valoração, mas sim por sua antiguidade, santidade e sua indiscutibilidade” (MELO, 2004, p.64). A moral não se fundaria assim no costume em si mas no sentimento do costume. Assim é que o sentimento do costume vai ditar a normalidade: satisfazendo a regra de que todas as nossas ações devem ser calculadas, justificadas (mesmo que seja no sentimento do costume). Eis que nos baseamos no irracionalismo: fundamentamo-nos em doutrinas muitas vezes consideramos falsas, prostrando-nos em obediência a uma autoridade superior que se alimenta da força que é fruto da nossa própria obediência, esfacelando o que deu origem a própria obediência, que foi a utilidade, impedindo que a experiência seja vista como experiência renovada, calando assim a boca do entusiasta dionisíaco visionário, cujo sacrifício é praticado a cada nova (velha) geração. Assim a moral cristã ou socrática, baseia-se na “crueldade para consigo, na submissão de si: entra no conceito de homem mais ético da comunidade a virtude do sofrimento freqüente, da privação, da vida dura, da mortificação cruel.” (MELO, 2004, p.62-63). E é nisso, segundo o nosso ensimesmado filósofo que se converte em embrutecimento da humanidade, porque nos tornamos acríticos, deixamos de lado os nossos “Por quês”!

REFERÊNCIAS:

LAVOURA ARCAICA. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Produção de Luiz Fernando Carvalho (s.1) Produzido por Videolar S/A Sob licença de Cannes Produções S/A, 2005, DVD, son.,color.
NIETZSCHE, Friedrich.O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004.
RISSIN, Ruth. O universo primitivo em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Disponível em: http://www.rio4.org.br/v2/artigos/o_universo_primitivo_de_lavoura_arcaica.pdf.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Workshop de Direito e Literatura

Workshop Direito e Literatura: a leitura das imagens dos direitos

O Projeto Direito no Cinema: literatura, arte e cultura abre as inscrições, até o dia 06 de novembro, para os discentes interessados em inscrever trabalhos e ministrar oficinas no evento "Workshop Direito e literatura: a leitura das imagens dos direitos", que acontecerá nos dias 1 e 2 de dezembro.
Informamos que o pré-requisito para a inscrição de trabalhos é a participação e aprovação na disciplina optativa "Direito e literatura". As inscrições para o publico em geral e a programação completa serão divulgadas em breve.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

All Along the Watchtower


Nenhuma razão para ficar excitado
O ladrão delicadamente falou
Existem muitos aqui entre nós
Que sentem que a vida é apenas uma piada.
Mas você e eu temos passado pela vida
E esta não é a nossa sorte
Assim não vamos falr falsamente agora
a hora está ficando tarde.

BOB DYLAN

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

OS ASPECTOS PENAIS EM OS MISERÁVEIS

ANNA CAROLINA SANTOS
VITOR MARCELLINO TAVARES DA SILVA



1 UMA BREVE NARRATIVA
O livro “Os Miseráveis” de autoria do romancista francês Victor Hugo, trata da história de Jean Valjean, um homem que por ter furtado um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos que passavam fome, passa 19 anos cumprindo pena nas galés. Na verdade sua pena original era de apenas 5 anos no entanto, no final do quarto ano nas galés, Jean Valjean tentou fugir. Após ser recapturado, foi condenado a mais três anos. Quando cumpriu seis anos da sua pena, uma nova tentativa frustrada de fuga. E o mesmo se repetiu no décimo ano e no décimo terceiro, até completar dezenove anos.
2 O MITO DA RESSOCIALIZAÇÃO
Ao sair da prisão Jean recebe seu documento de identificação. Era diferente, amarelo. Nele estava escrito que se tratava de um homem perigoso, que havia cumprido dezenove anos de pena por furto nas galés. A cor e a mensagem que o documento trazia tinha como objetivo deixar absolutamente evidente que aquele era um cidadão diferente dos outros. E de fato era, se tornara. Após cumprir os dezenove anos de pena por um simples roubo de pão, Victor Hugo retratou a desumanização de Jean Valjean nas seguinte palavras:
Por tentar roubar um pão. Durante a prisão, o inofensivo podador de árvores tornou-se um homem temível.Tinha ódio da lei e da sociedade. Por consequência, de toda a humanidade. De ano para ano, sua alma foi se tornando amarga. Desde que fora preso, há dezenove anos, Jean Valjean não soltava uma lágrima. Quando saiu, acreditou que podia ter uma nova vida. Mas recebeu uma quantia miserável pelos dezenove anos de trabalhos forçados. Seu documento de identificação dizia se tratar de um homem perigoso. Logo arrumou um trabalho para descarregar fardos, pois era muito forte. Ao receber, ganhou menos do que os outros por ser um ex-condenado. Sentia-se escorraçado (HUGO, 2009, p.101).
Victor Hugo faz questão de ressaltar a forma como Jean Valjean saí do cárcere. Escorraçado. Em outra passagem, o autor informa que nas galés, Jean não tinha um nome, mas um número 24.601. Percebe-se que de todas as maneiras a sociedade busca acabar com tudo que de humano uma pessoa pode ter. Sua identidade, quando estava cumprindo a pena e sua dignidade ao finalmente voltar à “liberdade”. De repente, Jean Valjean, de humano, transforma-se em apenas mais um “ser”. Ao ler a passagem acima, as lembranças da contemporaneidade vêm à tona em uma velocidade sufocante. O caráter atemporal da obra em questão é rapidamente visualizado e nota-se que o caráter- ou a falácia – ressocializador do direito penal na verdade funciona às avessas.
Ojeriza-nos ao pensarmos em um sistema penal tão além do objetivo da ressocialização, pelo qual perpassam a idade contemporânea, onde predominava o que Michel Foucault chamou de Vingança Legal (FOUCAULT, 1977, p.99). A obra pública da pena deveria atingir dois objetivos, o cabresto moral, no intuito de um controle visível do que não se pode fazer, através dos espetáculos em praças públicas das penas aplicadas ao condenado e o castigo de utilidade secundária (FOUCAULT, 1977, p. 103), com escopo vingativo.
3 A PROPORCIONALIDADE DA PENA
Quando Jean Valjean é preso por roubar um pão, identificamos em seu personagem muitos brasileiros que cometem esse tipo de “delito”, se é assim que podemos chamar o resultado da omissão do Estado, e que com toda força do aparato estatal é miseravelmente vilipendiado. O Estado de Direito, vivenciado naquela época exigia o cumprimento da lei, os princípios como mecanismos de balanceamento de direitos, que devem integrar a valoração judicial das leis e as decisões, e que orbitam atualmente no direito penal, não existiam, por esse motivo percebemos uma desproporcionalização, no crime cometido e na pena aplicada. Princípios como da insignificância, da proporcionalidade e da responsabilidade social são claramente violados. Obrigar um homem a pagar uma pena de 19 anos de trabalhos forçados por roubar um pão, é de clara e evidente manifestação do reduto doloroso da proscrição do homem pelo próprio homem.
Jean Valjean alcançou níveis de miséria que ultrapassam o estado físico do ser humano, olhar algoz da sociedade e a brutalidade da pena, atinge níveis de crueldade inexoráveis, ao atingir a sua moral subjetiva, ele por um momento concebe a pena como justificável. O raciocínio se constrói da seguinte maneira, conduta antinormativa, crime, aplicação da pena. Tornar um homem inflexível diante de seus próprios infortúnios é condená-lo a uma pena que se postergará na sua vida, através da “autoflagelação” e a rudez do julgamento alheio. É neste ponto que encontramos a falácia do sistema penal que outrora se figurava em castigos físicos, penas de caráter perpétuo e a pena de morte, e que hoje como um veneno que mata aos poucos, penaliza os indivíduos, trancafiando-os em celas para que dessa forma possam aprender a viver em sociedade. Mas, como ensinar um homem a viver livre, prendendo-o?
O Estado Democrático de Direito defende através das leis uma gama de garantias fundamentais, baseadas no chamado "Princípio da Dignidade Humana". O Direito Penal brasileiro é um mecanismo utilizado como ultima ratio, o poder incriminador do Estado só se legitima se a criminalização de uma conduta se constituir meio necessário a proteção de um bem de grande relevo. Além do mais, a pena deve ser galgada pelo princípio da proporcionalidade e da racionalidade. Então porque diante de tantos mecanismos legais ainda há violações humanas? Ainda há pessoas presas por crimes famélicos? Há em tudo isso uma correlação absorta do que até hoje nos perguntamos: Qual o verdadeiro sentido do direito? Resolução de conflitos e a paz social? Aparentemente resolve-se o conflito, crime-castigo, mas é possível a paz social na carceragem brasileira? A resposta só pode ser negativa, então o sistema de julgar, condenar e penalizar, em que se finca o direito penal, apresenta-se falho.
A máxima do direito penal enxerga na pena um caráter ressocializador, mas ao contrário do que acontece, o indivíduo apenado, apenas introjeta as ideias e regras, ele não assimila que ao cometer um crime não está somente indo de encontro a uma regra, mas está causando um malefício a alguém. Ademais a mão punitiva do estado permite não a resolução do conflito por inteiro, ou seja, fazer o indivíduo compreender suas ações, mas de controle social, de eliminação do que não é legalmente aceito e moralmente correto.
3 O ESTIGMA DO CÁRCERE E A VIOLÊNCIA DA “LIBERDADE”
Por meio da literatura, Victor Hugo também transporta o leitor a um outro problema que é enfrentado desde o século XIX, tempo em que o livro foi escrito, até os dias atuais. O estigma que o condenado recebe ao sair do cárcere. De uma forma poética, o autor convida o leitor a apreciar o tema pela ótica do apenado. Jean encara sua condenação como uma doença degenerativa que corrói todo o seu futuro e envergonha o passado, transportando-o a um “tempo que não passa”, a um presente sem futuro e sem volta.
O que não se percebe a primeira vista é a parcela de culpa que a sociedade tem na existência do crime, simbolizada pelo autor na recusa de todas as estalagens em receber Jean quando o mesmo chega à pequena cidade de Digni. Por meio da metáfora das portas fechadas, o autor demonstra a forma como o corpo social recebe de o ex-criminoso, que na verdade não ganha o prefixo “ex” ao cumprir sua pena. A representação do fechar das portas transporta o leitor às próprias portas da vida, às oportunidades que são reiteradamente fechadas no exato momento em que se tem a notícia de que se trata de um ex-prisioneiro. A realidade atual não mostra algo muito diferente do retratado em “Os Miseráveis”. Sem capacitação e oportunidades, os ex- condenados em grande parte das vezes por subsistência, acabam voltando a cometer crimes.
Ironicamente, dada à época em que a obra foi escrita, após sucessivas tentativas infrutíferas de se hospedar em uma estrebaria, um padre é quem acolhe Jean no meio da noite fria. Por meio da figura do padre o autor revela sua crença na humanidade do homem. É basicamente ele, quem volta a humanizar a sociedade, demonstrando a presença das ideias de Rousseau e do seu “Estado de Natureza”, no tempo em que a obra foi escrita.
No desenrolar da história, Jean torna-se um homem honesto e correto, comprovando a ideia do autor de que o homem é bom, desde que a sociedade não vede as oportunidades para ele. Ao final da obra compreende-se que o grande homem virtuoso é o ex-condenado, o padre mesmo antecipa a percepção que o autor tem do crime: “o pecado faz parte da vida, o que deve se buscar é pecar menos”. Para ele os erros são absolutamente normais, e a questão da humanidade dos homens para além da solidariedade e do bom comportamento, também pode ser verificada na reconstrução do próprio homem, em uma espécie de “reumanização”.
4 O PAPEL DO ESTADO E DO APLICADOR DA NORMA
Durante todo o seu processo de “reumanização” Jean Valjean é por diversas vezes perseguido por um policial, Javert, que mesmo depois de passados muitos anos, tenta sempre “cumprir a lei”. É a obediência cega à norma que caracteriza o policial Javert que não chega a se tornar o vilão da história unicamente por conta do caráter existencial – como se percebe no excerto abaixo - do motivo que o leva a perseguir incansavelmente Jean, o dever de cumprir a lei.
(...) Vivia um dilema: entregar Jean Valjean seria ingratidão. Deixá-lo livre, uma traição para com seu dever de policial. Seu ideal sempre fora mostrar-se inflexível no cumprimento do dever. Mas o antigo forçado fora generoso e bom. Não compreendia como era possível. Só havia uma maneira de resolver o dilema, a seu ver. Tirou o chapéu e colocou-o sobre a amurada. Subiu ao parapeito. Pulou no rio. Ouviu-se um baque. As águas sepultaram para sempre o inspetor Javert.

Victor Hugo sutilmente ilustra o conflito entre regra e princípio, transporta para a vida de Javert, um dilema que acaba por lhe tirar a vida: cumprir o dever normativo nem sempre é o correto a se fazer.
Por ter uma visão estritamente positiva da lei, Javert assim como muitos juristas contemporâneos, não conseguem perceber a impossibilidade das leis em abarcar a totalidade de casos e a complexidade que o mundo real apresenta. Cabe, portanto, ao aplicador da lei, ilustrado pelo simples policial, fazer a ponte e perceber o momento em que a irracionalidade está justamente em seguir o racional, a ordem jurídica. O direito não pode se tornar instrumento de promoção de injustiças sob pena de perder seu propósito de existir.
5 A REFLEXÃO
A obra nos parece arrastar por um imaginário do direito que puni, julga e elimina os atos contrários ao ordenamento jurídico e uma sociedade que exclui, rechaça e encarcera os infortúnios alheios, mesmo o indivíduo estando em liberdade. Afinal, até onde está o limite da pena? Seria um ultraje falarmos que hoje, diante da criação dos Direitos Humanos todas as angustias do direito foram solucionadas e maximização dos escopos da punição foram alcançados. Mas, o direito positivado escorre pelos ralos do poder judiciário, e a ausência da efetivação do que o torna tão bonito teoricamente se perde no abstrativismo das respostas não solucionadas: Porque o homem continua em um estado animalesco de cárcere, mesmo enquanto encontra-se em liberdade?

Análise do livro “Os Miseráveis” de Victor Hugo apresentada à matéria Direito e Literatura ministrada pelo docente Luiz Otávio Pereira.


REFERÊNCIAS
HUGO, Victor. Os Miseráveis. 13ed. Cosac Naify: 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3ed. Petrópolis: Vozes: 1977.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 5ed. São Paulo: Martins Claret: 2010.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO

UM RETRATO FICCIONAL DO PARADIGMA JURÍDICO MODERNO

VICTOR RUSSO FRÓES RODRIGUES
WILKE FERREIRA DA LUZ


O conto é um gênero literário curto, conciso, no mais das vezes com núcleo único, linearmente construído (com raras oportunidades de flashback), que impõe restrições à elaboração de personagens. A vida não. Tampouco a vida jurídica, com seus personagens quase infinitos, seus múltiplos núcleos, sua complexidade cada vez maior (fenômeno jurídico). Como, então, um conto aparentemente afastado do rigor metodológico-científico do Direito, esse muitas vezes hermético aos não-juristas, pode nos remeter a digressões e extensões que aproximam realidade e ficção jurídicas? Em resposta, valemo-nos de Claudio Weber Abramo: “O poder da literatura reside em propiciar a abordagem de seus temas de modo metafórico. Conceitos para cuja expressão formal se exigem rigores metodológicos podem, na obra literária, ser transmitidos numa frase, numa reticência”. (ABRAMO, 2002, p. 5). E é metaforicamente que “O Homem de Cabeça de Papelão”, de João do Rio, nos chama à análise jurídica. Vamos a ela.

1 BREVE RESUMO

No conto, Antenor é um cidadão do País do Sol discriminado por seus compatriotas. Os motivos da discriminação são os fatos de Antenor FALAR A VERDADE e PENSAR. Destoante do restante da população, o pensador se viu alijado do convívio social e do trabalho, recebendo constantes conselhos de que “ajeitasse sua má cabeça”, visto que não se enquadrava no Bom Senso pregado pela sua sociedade. Com ânsia de casar-se com Maria Antônia (filha da lavadeira de sua mãe), Antenor vê-se encurralado entre o amor/pressão e o seu modo de vida pautado pela verdade. Fortunadamente (ou infortunadamente), Antenor depara-se com uma relojoaria e lá descobre que pode deixar sua cabeça para conserto, recebendo em troca uma cabeça de papelão, fabricadas em série. A partir daí, o novo Antenor galga as maiores posições sociais, a fama e a fortuna, trapaceando e mentindo. Aclamado por seus agora pares, após algum tempo ele novamente defronta-se com a relojoaria, no que lembra de sua antiga cabeça. Em conversa final com o relojoeiro, esse lhe diz que sua cabeça sempre esteve em perfeito estado, sendo uma das mais geniais com que já se deparara. No momento de reavê-la, entretanto, Antenor pede ao relojoeiro que embrulhe-a, pois irá guardá-la, terminando com a cabeça de papelão. Ele tornara-se um deles.

2 CRÍTICAS SUBMERSAS

Após esse pequeno resumo do conto em lume, analisemos as críticas metaforicamente feitas por João do Rio, escritor e jornalista carioca, nascido no fim do século XIX e falecido no início do século XX.
Primeiramente, o cenário da capital do País do Sol pintado pelo autor combina com uma visão da sociedade complexa encontrada nos dias atuais e na qual o Direito encontra-se submerso. Vejamos uma passagem do conto que ilustra a capital:

Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral.

Facilmente perceptível é a semelhança com a sociedade que estava sendo construída na época do autor e que veio a concretizar-se posteriormente. Já dizia Louis Assier-Andrieu: “O direito é uma realidade social” (2000, p. XI). Logo, o Direito refletirá a complexidade social da cidade moderna, marcada por suas instituições superestruturais (o Governo, os partidos, o próprio Direito, etc), de acordo com o conceito criado por Karl Marx.
Outro aspecto importante a ser abordado no conto é a situação do personagem principal, Antenor. Por que ele era socialmente mal visto? Por que nunca se estabilizava em emprego nenhum? Mais uma vez analisemos trechos do conto:

Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que tinha até sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma de seus concidadãos.

Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria.

- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

Antenor sempre fora discriminado por FALAR A VERDADE e PENSAR. Um paralelo dessa situação é o encontrado no Direito: o embate do dogmatismo X contradogmatismo. Entenda-se aqui a utilização dessas duas expressões tanto no seu lado romântico, como diria Luis Alberto Warat (WARAT, 1994, p. 86), quanto no seu lado crítico. Mais uma vez, metaforicamente podemos utilizar-nos da literatura para a inserção de discussões jurídicas, especificamente no âmbito da Teoria do Direito.
O dogmatismo jurídico tem como sentido comum a intransigência, o formalismo, a observância somente do que as normas prescrevem (FERRAZ JR., 2008). Fundado no princípio da inegabilidade dos pontos de partida (LUMANN, 1974 apud FERRAZ JR., 2008, p. 25), o dogmatismo se assemelha à maioria da população da capital do País do Sol, pois reluta em aceitar mudanças, execra o diferente, impossibilita o pensamento crítico-reflexivo. E é essa a tônica dos cursos de Direito há séculos: pautado no dogma do “positivismo exegético-normativista. E, nessas condições, não possibilita a formação de operadores jurídicos críticos, reflexivos e preocupados com a função social do Direito” (HUPFFER, 2008, p. 24). O que no conto representa o Bom Senso para os moradores do País do Sol, analogamente representa a Segurança Jurídica para os dogmáticos positivistas.
No entanto, temos o cuidado de aqui explicitar o apontamento de Warat em relação à visão unicamente negativa da dogmática jurídica, que não deve ser absoluta:

Não tenho dúvidas, que o movimento contradogmático só pode continuar vital no cair no kitsch, se abandonar as suas formas passadas, se construir a sua memória e aceitar o lado positivo da dogmática jurídica. O tempo das negações absolutas já passou, repetí-lo agora é construir um anarquismo ingênuo (WARAT, 1994, p. 83).

3 O DESFECHO DE UM CONTO JURÍDICO

Impressionantemente, um conto escrito há mais de um século pôde desvelar tantos caminhos para análises jurídicas atuais, e note-se que somente exploramos a ponta do iceberg. “O Homem de Cabeça de Papelão”, por seu título, enquadraría-se como pseudônimo para milhares de bacharéis em Direito formados pelos mais de 1.200 cursos de Direito no Brasil. “Alunos” (sem luz mesmo) que já entram sendo deformados por uma cultura de educação jurídica que não muda há séculos, conforme explicita Tércio Sampaio Ferraz Jr: “Na verdade, nos últimos 100 anos, o jurista teórico, por sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista” (FERRAZ JR., 2008, p. 25). Refere-se ele ao ensino dogmático-técnico do Direito.
Por fim, mais uma vez o conto estudado nos alumina o pensamento com uma crítica, na voz do tio de Antenor:

- Ouça! – bradava o tio – Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

Antenor não aceitou o “conselho” de ser bacharel somente para obter prestígio político e social. Ainda não tinha cabeça de papelão.

Ensaio produzido para a matéria Direito e Literatura ministrada pelo Professor Luiz Otávio Pereira, a partir da leitura do livro: O homem de cabeça de papelão de João do Rio.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Claudio Weber. Apresentação In. Corrupção: 18 contos. Org. Rodrigo Penteado. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. Trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

COSTA, Alexandre Bernardino. A teoria do direito na modernidade da sociedade moderna In. Notícias do Direito Brasileiro. Brasília: UNB.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

HUPFFER, Haide Maria. Ensino jurídico: um novo caminho a partir da Hermenêutica Filosófica. Viamão, RS: Entremeios Editora, 2008.

WARAT, Luis Alberto. O outro lado da dogmática jurídica In. Teoria do Direito e do Estado. Organizado por Leonel Severo Rocha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.