quarta-feira, 20 de julho de 2011

AS METAMORFOSES DO VAMPIRO



(Charles Baudelaire)

E no entanto a mulher, com lábios de framboesa
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
- "A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
As lágrimas eu seco em meios seios triunfantes,
E os velhos faço rir com o riso dos infantes.
Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda de meus lábios,
Ou quando os seio oferto ao dente que o mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"
Quando após me sugar dos ossos a medula,
Para ela me voltei já lânguido e sem gula
À procura de um beijo, uma outra eu vi então
Em cujo ventre o pus se unia à podridão!
Os dois olhos fechei em trêmula agonia,
E ao reabri-los depois, à plena luz do dia,
Ao meu lado, em lugar do manequim altivo,
No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,
Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,
Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos
Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,
Que nas noites de inverno ao vento se balança.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

GLOBALIZAÇÃO DE CONTIGENCIALIDADES

NATHALIA PEIXOTO
GUSTAVO FREITAS



Globalização e direito são palavras que conceituam um pluralismo de fenômenos, representam processos que caminham em torno do homem moderno. Nesse trabalho, dada a complexidade e extensão do tema, nossa análise recai sobre a modernidade com seu caráter contingente, eventual, duvidoso, incerto do direito, desse direito fruto da modernidade, fruto dessa sociedade do risco, intrinsecamente ligado a um fenômeno muito conhecido por nome, mas pouco conhecido de fato: a globalização. Tentaremos enxergar algumas das intercessões ligando direito moderno com algumas tendências da globalização.
Traçar as principais características do direito moderno é nossa tarefa, então, partiremos da pergunta “qual a modernidade do direito da modernidade” (DE GIORGI, 1998, p.150)? O direito numa visão histórica é uma ferramenta de manutenção da ordem e um mecanismo de decisão, solucionador de conflitos, de uma determinada sociedade. Daí se dá a crítica de De Giorgi, que os mecanismos de inclusão paradoxalmente geram exclusão, isto é, que as “inúmeras micro-racionalidades surgidas na dinâmica dessa caótica expansão legislativa revelam-se potencialmente conflitantes entre si, sendo, portanto, incapazes de convergirem direção a uma racionalidade” (FARIA, 2002, p.77). Racionalidade esta que, anteriormente, era nos garantido pelo direito positivo, mas que diante do fenômeno da globalização tem tornado o direto positivo cada vez mais confuso, direito esmiuçado diante da pluralidade, diante das problemáticas paradoxais.
Os sistemas jurídicos têm cada vez mais, através do fenômeno da globalização, transfigurado sua estrutura. A globalização provoca uma mudança na estrutura do próprio Estado, os tentáculos da economia global muitas vezes se sobrepujam ao índice de intervenção estatal diminuindo a eficácia dos sistemas jurídicos neutralizarem tensões, diminuir conflitos. Na globalização, quanto maior a diversidade maior será a possibilidades de resultado, tantos os pretendidos quanto os não pretendidos, maior o risco diante dessas multiplicidades
Tratemos, agora, de uma visão de alguns pontos gerais bem característicos da globalização. A idéia de globalização, para alguns desavisados, passa por um fenômeno monolítico, quase linear em que parece não haver dissenso. Essa crença “não só confere à globalização as suas características dominantes, como também legitima estas últimas como as únicas possíveis ou as únicas adequadas.” (SANTOS, 2002, p.27). Longe dessa idéia simplista de globalização, concordamos com Boaventura de Sousa Santos que afirma que a globalização trata-se de um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. (SANTOS, 2002, p.26).
Destacaremos duas tendências da globalização, que vem fragilizando a idéia de direito moderno. A primeira, dirá Faria, “decorre do caráter paradoxal das inovações científico-tecnológicas” (FARIA, 2002, p.60). Com o avanço dos recursos tecnológicos, maior será a capacidade do homem na exploração dos recursos naturais, sendo também maior o risco, dúvidas e perigos com relação aos efeitos não previstos, ou aos abusos, no uso dessas tecnologias. Isso gera incerteza ao bem-estar social e a segurança econômica.
Quando o “direito produz mais não-direito” (DE GIORGI, 1998, p.157) significa atrelar este conceito a pluralidade econômica, social, política que provoca uma inflação legislativa que corresponde à singularidade de cada caso, isto é, a racionalidade cada vez mais vai deixando de ser o eixo de sustentação dos sistemas jurídicos dando lugar ao irracionalismo submisso a peculiaridades casuísticas e pragmáticas, abandonando o ideal iluminista racional, no qual a razão era ou é sendo substituída por um dever ser. Ou seja, a modernidade da modernidade gera incerteza porque abandona a razão dialética de verdades frutos de erros corrigidos abarcando no ceticismo da relatividade extremada que nega as verdades devido aos conflitos que ela mesma cria.
Podemos citar como exemplos, desde degradação ambiental irreversível até a inadimplência generalizada de empresas. Como o direito moderno reage a danos provocados por forças transnacionais? Quem responsabilizar pelos danos? É aí que podemos citar os riscos ambientais, os direitos difusos, direitos que não se pode identificar a titularidade, mas que cada vez mais percebemos o se caráter coletivo, pois as conseqüências das catástrofes ambientais, provocadas ou não pelo homem, cada vez menos respeitando fronteiras, classes sociais, gerações. Aliás, a crise no setor imobiliário americano em 2009 ao se expandir para todo globo deixou evidente esses riscos e provocou uma onda de perplexidades.
A segunda tendência, para melhor ser compreendida, exige um breve comentário sobre o que é o consenso de Washington ou consenso neoliberal. Ele visa “o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia” (SANTOS, 2002, p.27) e fora adotado pelos Estados centrais (ocidentais) na década de 80 do século XX. A partir desse consenso o desenvolvimento, voltou-se novamente para o mercado, após décadas de atuação do Estado na economia. Segundo os países centrais, essa é a única forma compatível com o novo regime global de acumulação:
Consiste em substituir ate ao máximo que for possível o principio do Estado pelo princípio do mercado e implica pressões por parte dos países centrais e das empresas multinacionais sobre os países periféricos e semi periféricos no sentido de adoptarem ou se adaptarem as transformações jurídicas e institucionais que estão a ocorrer no centro do sistema mundial. (SANTOS, 2002, p. 39).
Desta forma o Estado deve intervir menos e como conseqüência tem o enfraquecimento de suas instituições e o sistema fechado do direito moderno se torna, paulatinamente, aberto. Daí, por exemplo, temos desde uma menor preocupação com meio ambiente até uma perda gradativa de cidadania.
“O direito positivo condiciona-se a partir de si mesmo” (DE GIORGI, 1998, p.155), isto é, o direito precisa ser entendido enquanto direito e como uma pessoa diferente do Estado porque só assim o direito poderá justificar o Estado. Apesar de serem entendidos de maneira distinta, um apóia-se no outro, é assim que podemos falar de Estado Democrático de Direito que se justifica por fazer direito. Se for através da centralidade que o Estado justifica-se como ordem jurídica se perdêssemos essa centralidade, que tende a ser crescente com a “modernidade alternativa”, nos assemelharíamos, segundo Kelsen (2009), a sociedades pré-estatais ou inter-estatais. É assim que o direito positivo se torna vítima do aumentando do nível de incerteza dos sistemas jurídicos.
Com a globalização houve o aumento dos riscos que as sociedades enfrentavam isso se deve a uma abertura gradual dos sistemas jurídicos. Colocando-se, assim, em xeque a função do direito o qual não consegue mais enfrentar a pluralidade das forças transnacionais. Temos a passagem paulatina da racionalidade do direito para uma irracionalidade, pois ele não consegue mais identificar os responsáveis pelos danos. Esse é o paradoxo, enquanto o direito tenta manter-se como um sistema fechado a globalização provoca o aparecimento de inúmeras micro-realidades, que se mostram cada vez mais conflitantes, a manutenção da coesão social, se torna cada vez mais difícil, as decisões jurídicas acabam por se tornar um objetivo meramente pragmático, deixando de lado a tão prezada segurança jurídica. A complexidade envolvendo direito e globalização é um ponto essencial, porém por várias vezes esquecidos nos cursos jurídicos. Até aqui apresentamos apenas dois capilares que envolvem essa interseção. E se o direito é um sistema fechado, para entendê-lo em sua capacidade é uma necessidade a formação de observadores jurídicos críticos “com o olhar voltado especialmente para os novos processos de dominação política e para novas estruturas de acumulação e a apropriação de riquezas privadas” (FARIA 2002, p.122).

REFERÊNCIAS:
DE GIORGE, Raffaele. Direito, democracia e risco. Porto Alegre. Sergio Antônio Fabris Editor, 1998.

FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Holf. Qual o futuro dos direitos. Editora Max Limonad, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Martins fontes. São Paulo, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização e as ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (org.).- São Paulo, 2002.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

DESPERTANDO O DIREITO ENCOBERTO PELA CASCA DOS CÓDIGOS

MARIA IZABELA SILVA VIDAL

UM OLHAR PENETRANTE E SENSÍVEL À PENUMBRA DE UM CASO DIFÍCIL

No exercício do cargo de juíza deste tribunal, reconheço que tenho um sério
compromisso com o Direito e a Justiça. Entretanto, tenho a convicção de que a tarefa de agir na sociedade em prol da concretização dessa última não se confunde com a mera aplicação da Lei. Assim, creio que a ética de um juiz de direito é, sobretudo, uma “ética do olhar” – um olhar flexível e desarmado já reivindicado por Norbert Rouland ao nos instigar a “descobrir melhor o nosso direito, embaixo da casca dos códigos” (2003, p.407). Desse modo, arrisco-me a lançar um olhar profundo sobre esse caso dos exploradores de cavernas, desprendendo-me do tecnicismo cego e adentrando o íntimo dos quatro réus.
Para isso, busco apoio nas conclusões de Gustav Radbruch ao analisar as fronteiras entre Direito, moral e costume: segundo ele, “o comportamento interior não é absolutamente indiferente ao direito” (1999, p.4), de modo que à avaliação jurídica não deve escapar as intenções e os sentimentos do indivíduo, uma vez que as suas ações decorrem do seu estado emocional.
É um equívoco, portanto, tratar o interior de um suposto criminoso como fonte secundária de suas ações. Desse modo, considero fundamental na análise desse caso o forte choque emocional, devido principalmente à iminência da morte e ao isolamento social, que certamente levou os espeleólogos, inclusive Roger Whetmore, a apostar suas vidas em um jogo de dados, com o intuito de que, em meio ao muito provável padecimento naquela caverna, ao menos quatro dentre eles retomassem a esperança de dela sair com vida.
Nesse sentido, concordo, assim como Dworkin (2002, p.17-18), que as pessoas, em geral, não enxergam as outras simplesmente como corpos em movimento, mas sim interpretam esses movimentos como manifestações de intenções, de modo que se o direito não olhasse as pessoas dessa forma, estaria tratando-as como meios e não como fins. Aplicando essa observação no caso dos exploradores, poderia alegar que a recusa inicial dos réus a prosseguir com a proposta de Whetmore nos mostra que, para eles, foi torturantemente complicado conformar-se com o fato de que, caso não saíssem todos mortos da caverna, provavelmente perderiam um ou mais dos colegas ali presentes. Entretanto, mesmo com o desamparo dos médicos, juízes e sacerdotes (que ignoraram os pedidos de conselho dos cinco espeleólogos quanto à viabilidade daquele crime), os colegas de expedição (em risco de inanição e em circunstâncias de profundo abalo emocional, insisto) aceitaram a possibilidade de perder um dos colegas ou a própria vida em prol deles.
Portanto, não foi uma suposta periculosidade ou uma mera perversidade que levou esses quatro espeleólogos a tomar a atitude tão desesperada de se alimentar da carne de Whetmore. Certamente não agiram desse modo simplesmente porque queriam que assim o fosse. Reforço esse ponto lembrando que, para Dworkin, “os homens [em geral] sentem que escolheram agir do modo que agiram, mas não sentem dessa mesma maneira em circunstâncias particulares que envolvam acidente, compulsão, coerção ou doença” (2002, p.18), ou seja, o indivíduo não sente que de fato optou por uma determinada ação quando alguma circunstância externa o inclinou àquela.
Desse modo, recuso-me a julgar esse caso e, por conseguinte, a interferir no destino desses desafortunados enxergando somente a transgressão a uma norma jurídica. E, assim como Dworkin (2002, p.18), concordo que o melhor modo de se julgar o comportamento de um Homem é aquele em que o observador se esforça a olhá-lo do mesmo ponto de vista com o qual o observado julga a si mesmo, isto é, do ponto de vista de suas intenções, motivos e capacidades.

O MITO DO RETORNO AO ESTADO DE HORDA

Infelizmente, a aproximação, que tanto defendo, entre o Direito e a realidade humana ainda esbarra na inércia daqueles que se agarram à dogmática jurídica, esquecendo a esfera humanista e social do Direito. “Uma causa deixa de ser nobre quando os seus defensores confundem os seus corpos com a lei”, afirma Warat (1994, p.85), alegando que o compromisso com o outro é, antes de tudo, um compromisso com a lei, de modo que ignorá-la levaria a Humanidade a um “retorno ao estado de horda”, onde imperaria a impunidade.
Entretanto, nego-me a tomar a medida tão simplista de adivinhar a vontade da lei, de buscar um suposto “propósito” ao qual serve a norma ou ainda de procurar alguma lacuna na legislação que possa proteger esses quatro espeleólogos de mais um abalo emocional, que dessa vez seria promovido pelo Estado. Para sustentar isso, alego que eu, assim como Dworkin (2002, p.14), concordo que o Direito Penal, mesmo que tenha o propósito de prevenir crimes, pode se submeter a princípios que limitam a sua eficiência para alcançar aquele objetivo: desprezar esses princípios seria ultrapassar a linha que protege a dignidade do “sujeito de direitos” da interferência do Estado.
Quanto ao possível “retorno ao estado de horda”, que supostamente decorreria do fato de que uma impunidade justificaria outra, faço novamente uma alusão ao pensamento de Dworkin (2002, p.138-139), alegando que a coerência na aplicação de um princípio consiste na adequação de uma determinada política sobre o caso em questão, de modo que os princípios já empregados em decisões anteriores somente poderiam ser retomados com a condição de que se mostrasse que os novos casos são compatíveis com aqueles mesmos princípios.
Desse modo, considero falso o argumento segundo o qual a não punição dos quatro réus poderia, posteriormente, justificar a impunidade sobre homicídios que, apesar de aparentemente similares ao que está em questão, ocorreriam em circunstâncias muito diferentes das que envolveram esse caso dos exploradores.
Atento-me ainda ao fato de que a partir do século XIX, segundo Foucault (2003, p.84), a noção de criminologia e de penalidade cedeu espaço, na teoria penal, à noção de periculosidade, que, em termos práticos, indica que o controle penal punitivo dos indivíduos deve estar “ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos, não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. Desse modo, julgo improcedente a aplicação do que Foucault (2002, p.86) chamou de “ortopedia social” (correção das virtualidades do indivíduo) sobre esses quatro espeleólogos, pois é certo que eles não são inimigos da sociedade, isto é, não representam efetivamente uma ameaça a ela.

A MARCHA FÚNEBRE DOS DITAMES DAS LEIS

Esse caso certamente representa o que, para De Giorgi (2006, p.60-70) seria uma “ruptura” da memória do Direito, orientado justamente para uma adequação à realidade do caso, cuja excepcionalidade me faz considerar temerário entregar a sorte desses homens aos ditames da Lei. É certo, entretanto, que mesmo escapando ao choque carcerário ou a qualquer outro modo de punição, esses homens estarão para sempre atormentados por aqueles 32 dias de horror e pelo remorso de ter sacrificado a vida de um colega. Não encontrando motivos para puni-los mais ainda, absolvo, portanto, os quatro exploradores de cavernas.

REFERÊNCIAS

DE GIORGI, Raffaelle. Direito, tempo e memória. Trad. Guillerme Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FOUCAULT, Michel. As verdades e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Trad. Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Trad. Vera Barkalow. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WARAT, Luís Alberto. Teoria do direito e do estado. Porto Alegre: Sérgio
Fabris, 1994.

DIREITO ENQUANTO ESTUDO CRÍTICO E ANALÍTICO

LUIZA BATISTA VILAÇA DE OLIVEIRA




O Direito vai muito além de simples questões normativas estatizadas ao longo do tempo no ideário de alguns pensadores e profissionais da área. Justamente por ter como objeto de estudo o ser humano, ou seja, algo mutável e instável em suas ações e pensamentos não há possibilidade de haver eficácia em um Direito positivado. Neste sentido, se faz necessária a existência daquilo que o jurista FERRAZ JUNIOR (1980) denominou de hermenêutica, sendo esta uma teoria da interpretação, tendo por função aproximar a positividade da lei dos princípios de equidade, justiça e legalidade. Desta forma, o Direito passa a ser mais que mera aplicação e incorpora a necessidade da interpretação, de maneira individual, mediante cada caso exposto. Tomando esta ideia como base para a formulação de uma linha argumentativa acerca do caso dos exploradores, tomo como ponto de partida a verificação, a análise do caso como sendo algo particular, com peculiaridades que devem ser levadas em conta durante todo o processo de construção do pensamento. Não se trata de uma simples tipificação, mas de um estudo analítico que permita a maior aproximação possível de uma sentença que seja de fato justa.


A POSITIVIDADE NA CONTEMPLAÇÃO DA INJUSTIÇA:

É muito simples para um profissional do Direito querer abordar cada caso de forma genérica, apoiando-se nas leis escritas e utilizando as mesmas como um escudo de justificativas para suas ações ditas “justas”. Não é afinal o que os positivistas fazem? Estatizam as leis, não refletem sobre as mesmas e acabam muitas vezes por causar uma injustiça chamada justa? KELSEN (1998), em sua teoria pura do direito, busca delimitar o campo de atuação do âmbito jurídico:“Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.” (KELSEN, 1998, p.11). Mas como limitar o Direito apenas à normatividade quando seu objeto de estudo abarca uma complexidade que demanda maior abrangência de compreensão e análise? Como desvincular o homem da questão ética, moral, psicológica, quando isto esta arraigado em seu ser? Se assim for feito, haverá então uma falsa ilusão de contemplação da justiça, e neste caso existirá na sociedade uma constante prática de injustiça.


DIREITO REFLEXIVO E O CASO DOS EXPLORADORES:

A situação apresentada no livro “O caso dos exploradores de cavernas” aborda uma problemática que envolve não somente a questão jurídica e normativa tal qual ela se apresenta nas leis escritas, mas também o fator moral, ético, as necessidades e fraquezas humanas que assolam o psicológico do homem em determinados momentos de desespero e angústia.
O caso em questão expõe, sem análise mais profunda, um homicídio. De fato existiu um assassinato, quatro indivíduos mataram um ser humano, retirando do mesmo seu bem maior, sua vida. Tendo como base esta primeira apreciação, verificando apenas a concretização do ato, se espera que a pena cabível aos réus seja a máxima. Mas até que ponto esta pena é justa se não há reflexão acerca das circunstancias que culminaram na concretização do fato?
Justiça. Esta é a finalidade ultima da existência de todo ordenamento jurídico, é um princípio já enunciado por Platão como estando acima das demais virtudes. Já para positivistas como Hans Kelsen, a única forma de alcança-la é a simples aplicação da lei. É possível a verificação desta teoria através de uma análise feita por Warat do pensamento kelseniano: “Kelsen imaginou que o objeto de uma ciência jurídica em sentido estrito não pode ser mais do que o conjunto de normas positivas de um Estado”. É exatamente esta divergência que foi erroneamente estabelecida entre leis e reflexão que deve ser refutada.
Na defesa da importância de existir uma vasta reflexão e detalhada análise do caso, volto meu pensamento para o filme “Doze homens e uma sentença”. É perceptível, a partir do entendimento do mesmo, o quanto se faz necessária a reavaliação dos fatos, pois é a partir do estudo dos mesmos que será possível a maior aproximação daquilo que vem a ser a justiça. Fazendo um parâmetro desta ideia com o caso em questão é inevitável a conclusão de que é crucial a análise das circunstâncias anteriores ao fato. Não basta somente tipificar o crime e com isto condenar os réus, pois desta forma haverá um extremo caso de injustiça.
Estão em julgamento quatro homens acusados de assassinato, o que de fato ocorreu, mas qual circunstancia os levaram a cometer tal ação? Esta é a indagação que deve ser feita, deve haver a busca pela motivação, se assim não fosse então qual seria a finalidade de diferenciar um homicídio por legítima defesa do homicídio doloso? Afinal, o resultado da ação é o mesmo, a morte. A partir disto, a conclusão a que se chega é que o que de fato deve importar em um processo judicial é o conjunto de fatores que levam à concretização do ato.
É válido ressaltar as condições que se encontravam os trabalhadores: presos, com poucos mantimentos e sem previsões exatas para saída do local. Com isto, faço um paralelo ao estado de natureza de Rousseau, onde o homem se encontra em perigo e se utiliza de todas as ferramentas para auto preservação: “Sua primeira lei consiste em proteger à própria conservação, seus primeiros cuidados os devidos a si mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da razão, sendo o único juiz dos meios apropriados à sua conservação, torna-se por si seu próprio senhor.” (ROUSSEAU, 2002, p.11). Constata-se então que o risco eminente de morte levou os trabalhadores a utilizarem o que tinham para dar continuidade àvida.
É importante ratificar a participação da vítima para a conclusão do fato, sendo esta mentora da ideia, das medidas a serem tomadas e portadora dos dados utilizados no jogo. Durante o contato realizado com profissionais envolvidos no resgate, Roger Whetmore cogitou a possibilidade de um dos cinco exploradores servirem de alimento para os demais, ou seja, Whetmore considerava a hipótese plausível se esta fosse a única saída de sobrevivência. Independente do que ocorreu após o último contato dos exploradores com os profissionais do resgate, Whetmore participou espontaneamente do jogo, ainda que resistindo por um momento, e por decorrência concordou com as consequências advindas da situação.
Por fim, defendo uma teoria dialética na construção de um Direito justo e eficaz, onde a obtenção da justiça parte não simplesmente de uma normatividade positivada, e sim de um pensamento analítico e reflexivo. É a partir desta visão crítica que julgo improcedente a condenação dos réus, uma vez que ao verificar os fatos acima expostos não defendo a ideia de que não houve assassinato, mas faço valer como argumento de absolvição o fator motivacional, todas as circunstancia presentes durante o ocorrido, desde o desgaste psicológico até o envolvimento da vítima. E é com este posicionamento crítico analítico do Direito que absolvo os réus.


REFERÊNCIAS

FULLER. Lon. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1976.

WARAT. Luis. Os quadrinhos puros do Direito. Ed. ALMED.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1980.

KELSEN. Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2002.