terça-feira, 10 de abril de 2012

ESTEREÓTIPOS E ARGUMENTAÇÃO NO FILME ADVOGADO DO DIABO[1]
Gustavo Pereira Freitas[2]

Sumário: 1- Introdução; 2- Estereótipos Jurídicos; 2.1- Você Defenderia o Diabo? 2.2- O filho do Diabo ou o “diabo do advogado”?; 3- Argumentação; 3.1- A lógica formal do Direito; 3.2- Casos Indefensáveis; 4- o Orador e a “Verdade”; 5- conclusão: A Ditadura do Fato; 6- Referências.

“Mas, ao passo que aquele que toma a iniciativa de um debate é comparável a um agressor, aquele que, por seu discurso, deseja reforçar os valores estabelecidos se assemelhará àquele guarda protetor dos diques que sofrem sem cessar o ataque do Oceano.” (PERELMAN, 1996, p. 61, destaquei).

1 – Introdução
Gostaria de iniciar a análise do filme “Advogado do Diabo”[3] ressaltando que toda obra quer seja ela artística, literária ou nesse caso cinematográfica possibilita uma série muito vasta de interpretações. Tentando atender os objetivos do projeto “Direito no Cinema”, ou seja, a utilização de um filme e sua correlação com o direito escolhi dois pontos a serem trabalhados.
 O primeiro tange a propagação de estereótipos jurídicos, a começar pelo que é trazido no titulo “Advogado do Diabo”, passando pela leitura que o filme faz da vida de advogado, pois como vocês presenciaram, no filme temos a sugestão que o advogado é filho do Diabo. E o segundo diz respeito a argumentação em geral, em especial analisar, se houver, a argumentação jurídica presente no discurso da personagem Kevin Lomax (Keanu Reeves).
 Nesse último, tentarei sintetizar o pensamento de Perelman exposto no seu Tratado da Argumentação: a Nova Retórica, sobre a estrutura da argumentação em geral, passando pela diferença entre argumentar e demonstrar uma proposição, sobre os pressupostos que devem estar presentes para que aja uma discursão e sobre os gêneros da oratória. Ao final, se bem sucedido, abriremos para o debate e outros questionamentos.
2 – Estereótipos Jurídicos
2.1 – Você defenderia o Diabo?
Imagine, o ouvinte, que o final dos tempos chegou, aconteceu e passou. Está na hora de a humanidade prestar conta com o Criador. Na sua defesa ela dispunha de um argumento incontestável: se pequei a culpa é do Demônio. “portanto, Em tudo que me condenais estará condenando o Diabo”, dizem os homens. “Logo, onde o Diabo for inocente você também será?” questiona-lhe o Pai. Para mostrar o erro do pensamento humano, Deus chama o Diabo o qual uma vez presente lhe é ordenado parasentar ao lado dahumanidade. “Homem você defenderia o Diabo?” pergunta-lhe o Criador.
Acredito que muitos dirão para esta pergunta um não. Nunca defenderiam o Diabo. Afinal ele é o Mal e como tal a Justiça para ele é que desapareça. Calma, me explico melhor. Voltemos a história, se o Demônio for considerado culpado,no julgamento dos céus, ele será extirpado. Agora isso só vai acontecer se ele tiver um julgamento justo, pois caso contrário o justo passará a ser injusto e, pasmem, o Mal triunfará. Certo?
Agora, o que me levou a contar essa história tem haver com o filme o “Advogado do Diabo” que vocês acabaram de assistir? O motivo é bem simples: nada passa uma ideia maior de indefensabilidade, de causa perdida, etc. do que se o réu fosse o Diabo. Para o senso comum, o Diabo não teria direito a uma defesa, ele seria “condenado” sumariamente. Isto porque tamanha é a evidência de culpa de Satanás que os fatos falariam por si só e contra isso não se argumenta.
Se assim o é, o advogado do Diabo é um estereótipo daquele que defende o impossível, isto é, aquele que sabendo que da “verdade”, da evidência, da culpabilidade de seu cliente, mesmo assim arranja artifícios e argumentos para livra-lo da justiça.Talvez a ética pessoal do advogado do diabo seja condizente com um pensamento comum entre os advogados: “não estou para julgar, mas para defender, seja ele inocente ou culpado”.
Nessa linha de raciocínio assistimos a um filme no qual advogado do Diabo a cada julgamento vai “inocentando” os evidentemente culpados. Senão vejamos: no primeiro julgamento temos o caso de um professor que abusa sexualmente de suas alunas, no segundo trata-se de um hinduísta sendo processado por suas crenças religiosas (detalhe que o juiz era judeu) e por fim o caso do triplo homicídio cometido pelo empreiteiro Alexander Collen. Em todos esses casos, a culpa é evidente dos réus além de que a personagem Kevin Lomax toma conhecimento da culpa de seus clientes, o que para o homem comum[4] já seria o suficiente para desistir da defesa e deixar os “criminosos” a sua própria sorte.
2.2 – O filho do Diabo ou o “diabo do Advogado”[5]?
Devemos observa que pano de fundo do filme, lançado no final do século XX, é o fim do milênio. Um século marcado pelo avanço das ciências, em especial das ciências naturais, onde a lógica formal prosperou e se tornou soberana, um século de guerras. A  humanidade atingiu um grau de complexidade inigualável, essa complexidade ira repercuti tornando problemas simples em problemas de alta complexidade. Diante desse quadro o homem moderno se ver perdido no mundo e perante uma justiça distante e complexa. Tudo isso refletiu numa descrença no sistema judiciário como um todo e uma grande incerteza para o próximo milênio.
Podemos ainda perceber em “o Advogado do Diabo”, lembrando contexto da incerteza do final do milênio, um posicionamento sobre a vida do advogado em geral. No qual o advogado aparece como um sujeito sem tempo para seus problemas pessoais ou para a família. Numa primeira situação que nós da uma mostra disso é quando a personagem Lomax tem que trabalhar até aos domingos para poder fazer a viajem rumo a New York. Segunda amostra é que todos os dias o advogado fica após o expediente para poder cumprir com suas responsabilidades o que talvez nós remeta a outro estereótipo qual seja: “advogado como escravo dos prazos”.
A terceira ocasião e quando em meio a uma festa social ele deve abandona a esposa Mary Ann (Charlize Theron) para tratar de assuntos profissionais onde vemos que a prioridade são os negócios. Por último e a de maior impacto e quando no meio de uma crise conjugal, com a esposa surtando, tem que abandona-la para se prepara para um julgamento. A conclusão que chegamos e de um homem que vive para seu trabalho, sem hora para o emprego mostra-nos um ser sem preocupações com os outros.
A leitura que somos levados a ter ao final do filme e uma descrença no sistema judiciário, em especial sua função de fazer justiça, que o advogado é o filho do próprio Diabo, pois mostra-nos um ser sem escrúpulos, sem outra preocupações senão as consigo mesmo, em dúvida sobre seus valores, etc. afinal, somente um ser que não cuida nem da própria esposa histérica poderia na visão do homem médio ser capaz de defender os eminentemente culpados e conseguir dormir a noite.
Para finalizar esse quadro temos que no desfecho da história acontece o suicídio de Lomax, devido a uma “crise de consciência” sobre suas ações o que nós leva de volta ao início do filme, onde o advogado acaba por desistir de defender o violentador de crianças. Com isso o filme nós consolida a tese de que para alguns casos, devido a evidencia da prova, não há possibilidades de defesa, restando o réu ser entregue a própria sorte.
3 – Argumentação
3.1 – A lógica formal do Direito
“Quando algo esta sendo julgado, o que realmente é julgado?”
Este é o questionamento levantado pelo ilustre professor Doutor Agostinho Ramalho Marques Neto, em palestra ministrada na aula magna do programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) realizada 20 de março de 2012, no Instituo de Ciências Jurídicas (ICJ). Com essa pergunta, ele tenta explicar que em todo julgamento, parece existir outra coisa, que esta em sendo julgada sem ser o objeto da lide.
Antes de tudo o possível criminoso tem sua vida exposta no tribunal, o qual passa a avaliar não apenas o homicídio, mas também a vida pregressa do réu. E em muitas ocasiões acaba por julgar, condenando ou inocentando, o acusado não pelo seu suas ações, mas por sua vida pregressa. Um exemplo disso esta no caso do professor que abusava das suas alunas, no qual os argumentos giram em torno da personalidade e da aparência do educador e não de provas. Nesse caso existia apenas um confronto de testemunhos e não provas da existência de um fato.
“Qual o Código usado em um julgamento?”
 Pergunta-nos Marques Neto, uma primeira resposta, obvia é que dependendo do conflito há um código pré-estabelecido. Se falarmos de um homicídio a lógica nos impõe que o Código a ser utilizado é o Penal culminado com o de Processo Penal (CPP). Ambos com uma carga normativa muito precisa, quase cirúrgica, subsidiam o magistrado a proferir a sentença. Contudo parece existir outro código, talvez um código moral, que também e utilizado na sentença.
O que esta em jogo perante o Tribunal, em frente ao júri,são os valores de uma sociedade e aquele ator que melhor souber persuadir os jurados num grande “teatro” é quem ganha a causa. Vejamos o que Perelman tem a nos dizer sobre essa lógica:
Este fato deveu-se ao que há de não-coercivo nos argumentos que vêm ao apoio de uma tese. A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa a certeza do cálculo. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 1. Grifei).
A lógica presente no Direito é a formal, descendente do método cartesiano de Descarte, fala-se de uma evidência no Direito da mesma maneira que é posta no do cálculo das ciências exatas. Isto esta demonstrado, como falávamos a pouco, na precisão cirúrgica do Código Penal (CP) e processual, parece não haver margem para a dúvida tamanha a clareza de enunciados como do art. 121 do CP “matar alguém. Pena reclusão de 6 a 20 anos”. Assim bastaria um mero juízo de subsunção a uma norma tipificada que a evidência dos fatos não deixaria margem para o erro.
Veremos a seguir como essa ideia de evidência se relaciona com outra a de casos indefensáveis.
3.2 – Casos indefensáveis
A ideia de casos indefensáveis não é uma preocupação recente dos atuantes na área do direito vejamos um trecho de uma carta datada de 26 de outubro de 1911 na qual o eminente Rui Barbosa responde a uma inquietação do Dr. Evaristo de Moraes  que a época questionava-se a respeito desse assunto:
Recuar ante a objeção de que o acusado é “indigno de defesa” era o que não poderia fazer meu douto colega, sem ignorar as leis de seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há recusa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apura-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve atacar rigorosamente. (BARBOSA, 2008, p. 36-37.).
Se entre juristas ainda há duvida sobre a indefensabilidade de certos casos, na opinião do homem médio isso não ocorre, pois e tamanho a culpa de certos acusados que todo aquele que ousar defende-lo estará cometendo um atentado a justiça. Temos então essa ideia de que “a evidência é concebida, ao mesmo tempo, como a força à qual toda mente normal tem de ceder e como sinal daquilo que se impõe por ser evidente. A evidência ligaria o psicológico ao lógico e permitiria passar de um desses planos para o outro”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4).
No filme, como a pouco argumentávamos, o  advogado do diabo tem uma série de casos que trabalha com essa lógica estritamente formal do direito, todos os casos que o Sr. Lomax assume são tidos como causa perdidas, indefensáveis na pela opinião pública, tamanha a evidência da situação. E como já explorado o advogado vai conseguindo achar meios de inocentar os culpados.
O que esta por traz da ideia de evidência é a concepção de um imaginário segundo o qual o a verdade processual nada mais seria do que uma “busca” pela verdade real. Junte-se a ideia da indefensabilidade e da evidência e descobriríamos que os reais fins do processo seriam então tentar através de provas que falam por si mesma, reproduzir uma verdade processual que tenderia a verdade real.
4 – O Orador e a “Verdade”
Até aqui, tentei expor, como os estereótipos jurídicos se fazem presente no filme advogado do diabo. Além disso, vimos a correlação da criação desses estereótipos com a lógica formal do direito e traçamos analogias com a ideia de indefensabilidade de certos casos. Agora, nessa última parte,discorremos sobre a primeira parte do Tratado da Argumentação: a Nova Retórica de Perelman para tentar elucidar dois pontos: o primeiro como é ou qual é a estrutura da argumentação em geral. E finalmente, verificarmos como ela se faz presente no “Advogado do Diabo” no discursoda personagem Kevin Lomax como orador se articula para convencer os diversos auditórios da “verdade”.
***
O que é argumentar?
Para explicar a natureza da argumentação,Perelman, ira contrapô-la a da demonstração[6]. Segundo Perelman (1996, p. 15 a 17), na demonstração de uma proposição bastaria ao lógico indicar quais procedimentos ela pode ser obtida como última sequência dedutiva cujos primeiros elementos serão ofertados por quem construiu o sistema axiomático. “de onde vem esses elementos, sejam eles verdades impessoais, pensamentos divinos, resultados da experiência ou postulados peculiares do autor eis questões que o lógico formalista considera alheias à sua disciplina.” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 16).
Para ilustrar essa afirmação, bastaria pensarmos na lógica formalque Kelsen Expos na sua Teoria Pura do Direito. Para ele, uma teoria da ciência positiva do direito seria pura e “isso significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito” (KELSEN, 2009, p. 1, grifei). O Jurista só deve conhecer a ideia de validade da norma a qual se daria por dedução, ou seja, por exemplo,a sentença do juizseriaválida devido respeitar  a Lei Orgânica Municipal, esta por sua vez e válida devido a Constituição Estadual e esta pela Constituição Federal, dita norma fundamental do sistema Kelseniano.
Segundo Perelman “toda argumentação visa à adesão dos espíritos e por isso mesmo pressupõe a existência de um contrato intelectual” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 16) esse “contrato intelectual” significa, antes de mais nada,que em princípio se faz necessário que os “espíritos” (leia-se, o orador e seu auditório) pactuem sobre os elementos básicos para a formação dessa comunidade, isto é, para que aja a argumentação o orador e o auditório devem parti de premissas aceitas em conjunto.
O “contrato intelectual”, que visaviabilizar a argumentação, ocorrerá se forem atendidas algumas premissas, quais sejam: uma linguagem em comum e a adesão do interlocutor. No que tange a linguagem seu problema não se resolve apenas porque os indivíduos dominam o mesmo idioma. Perelman chama a atenção sobre as regras que estabelecem o inicio discussão a hierarquia entre elas fundadasno direito de precedência[7], que fazem com que um deva responder em vez do outro, se não vejamos: “Há seres com os quais qualquer contato pode ser parecer supérfluo ou pouco desejável. Há seres aos quais não nos preocupamos em dirigir a palavra; há outros também com quem não queremos discutir, mas aos quais nos contentamos em ordenar.” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 18).
Já sobre a adesão do interlocutor as palavras, de Perelman, são bastante claras e nos bastam:
Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido. Não é pouco ter a atenção de alguém, ter uma larga audiência, ser admitido a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas assembléias, em certos meios. Não esqueçamos que ouvir alguém é mostra-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista.”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 19).
Presentes essas premissas, há viabilidade na argumentação. O orador em seu caminho de tentar argui o auditório terá que adaptar seu discurso perante o mesmo. Diz Perelman “Cada meio poderia ser caracterizado por suas opiniões dominantes, por suas convicções indiscutidas, pelas premissas que aceita sem hesitar; ”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 23).
Com essas novas funções que dão destaque ao ouvinte, esse já não pode ser ignorado pelo orador “e o que vale para cada ouvinte em particular não e menos válido para os auditórios” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 24). Com isso os auditórios poderão ser divididos, seguindo-se a divisão feita por Aristóteles, em três gêneros oratórios: deliberativo, judiciário e epidíctico. Quanto ao primeiro caracteriza-se por deliberações acerca do futuro, o segundo questiona-se sobre o passado e o último para exaltar valores[8].
Essa é basicamente as premissas e a estrutura da argumentação em geral agora passemos para uma breve análise desses conceitos ao discurso do advogado do Diabo.
***
A cena que iremos analisar é a do primeiro julgamento do filme. Vocês se lembram dela? E a que se refere a um caso de abuso sexual, na qual um professor é acusado de molestar sua aluna. Por se tratar de um julgamento, o gênero oratório predominante será o judiciário. Como dito esse gênero versa sobre o passado, e o passado em jogo não é necessariamente o do crime, percebemos que o que é discutido é a vida pregressa do professor, seus hábitos, caráter e personalidade.
O que temos que ficar atento é que em todo momento teremos uma referência a verdade, denominada “real” em contraponto a uma “verdade processual”. Nesse sentido percebemos que haveráoutra coisa sendo julgada sem ser propriamente o crime[9].
Nesse julgamento, no que tange as provas, só temos o testemunho da vítima contra o réu. A argumentação se dará para convencer os jurados de qual aversão mais coerente com a “verdade”. Assistimos que, o discurso da vítima tem um peso aparente muito superior ao do acusado. A pergunta que fica é por que?
Talvez isso ocorra pelo confronto adulto versus adolescente, sagacidade (malicia) contra inocência, etc. em quem vocês acreditariam? Em um homem de meia idade, solteiro, ou numa adolescente com lagrimas nos olhos? Parece existir um consenso social, de que uma jovem não denunciaria um crime desse tipo se algo realmente não houvesse acontecido.
Surge nesse contexto a ideia de evidência. Quem é mais provável de estar mentindo? Essa ideia nos conduz a outra a de indefensabilidade do caso. “Monstro atroz esse professor”, pesam os jurados. A verdade é latente. Como se argumentar contra os “fatos”? O advogado, então constrói seu discurso de maneira a atacar a ideia de inocência que é presumida a vítima.
Para tanto é interessante notar que ele vai construindo uma linguagem comum com o seu auditório, a saber: com os jurados. Começa a mudar os elementos básicos daquela situação. “você é uma boa aluna?” pergunta o Sr. Lomax. Perante o protesto do promotor de justiça o advogado responde “credibilidade” ai o juiz manda a vítima responder. A partir dai ideia da dúvida já começa a ser “plantada” na cabeça dos jurados. Essa dúvida crescerá tanto que afetará a própria vítima.
Percebemos com isso que o Kevin Lomax se utiliza da argumentação para combater essa lógica formal. Contrapõe a evidência a dúvida. Em nenhum momento produziu-se a verdade “real”, pois de fato isso é impossível, muito menos a verdade processual, pois não havia provas, quando muito se tinha apenas a versão das partes.Se houve algo sendo produzido foi a criação de uma “verdade” por meio da argumentação que se deu utilizando-se de um Código moral, julgando-se outra coisa é não o fato.



5- Conclusão: A Ditadura do Fato
Esse trabalho consistiu em apresentar a lógica formal dominante no direito. Esta que se aproxima da lógica das ciências naturais e a lógica da matemática. Nela se trabalha com a ideia da evidência de que os “fatos falam por si só”. Aliada a essa concepção temos outra complementar que é a de que no direito certos casos seriam indefensáveis, às vezes, não por causa do fato, do crime, etc. mas devido ao que esta sendo julgado.
O filme “Advogado do Diabo” de certa maneira defende essa a lógica da evidência. Através de uma serie de esteriotipos sobre a vida do advogado mostra uma profissão desvirtuada.Na qual todo aquele que sabendo que o réu é culpado por um crime nefando deve como o Kevin Lomax, ter uma “crise de consciência”, é deixar o acusado a própria sorte de tal maneira que só um advogado sem ética, sem apreço a  justiça, defenderia tal réu.
6- Referências
Advogado do Diabo. Direção: Taylor Hackford. Produção: Kopelson Entertainment.Intérpretes: Al Pacino; Keanu Reeves; CharlizeTheron. Roteiro: Jonathan Lemkin. Música: James Newton Howard. Los Angeles: Warner Brothers, c2009. 1 DVD (143 min), widescreen, color.Produzidopor Warner Video Home.

BARBOSA, Rui. O Dever do Advogado posse de direitos pessoais.2° edição .ed: Martin Claret Ltda. São Paulo, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Batista Machado – 8° ed. – São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2009.
PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie.Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. Tradução de Ermantina Galvão. ed. WMF Martins Fontes: São Paulo, 1996, p. 1 a 70.


[1]Palestra ministrada no projeto Direito no Cinema, coordenado pelo professor Doutor Luiz Otavio Correa Pereira. Realizado nomini auditórioHailton Corrêa do Instituto de Ciências Jurídicas (ICJ) da Universidade Federal do Pará (UFPA), no dia de 30 de março de 2012.
[2]É estagiário vinculado ao Ministério Público do Estado do Pará. Foi monitor das disciplinas Introdução a Ciência do Direito e Ética Jurídica. Integrante do Projeto Direito no Cinema. Faz parte do grupo de estudo teoria do direito. Acadêmico de Direito regularmente matriculado pela Universidade Federal do Pará.
[3]Para informações sobre o filme ver referências no final do texto.
[4]Ao logo do texto utilizarei expressões como “homem comum” ou “homem médio” para expressar todo ser racional, sem formação jurídica, que emite juízos sobse o direito baseados apenas no senso comum.
[5]Apesar de no filme o advogado ser filho do diabo literalmente, talvez a mensagem mais clara seja o diabo do advogado. Mas deixo para o ouvinte decidir qual é a “melhor” expressão. A segunda expressão aparece entre aspas devido a sua autoria pertencer a minha amiga e acadêmica Nathalia Karolin Cunha Peixoto.
[6]Para o senso comum argumentação e demonstração são associados como sinônimos.
[7]Perelman ao falar do direito de precedência e as regra de hierarquia na discursão, nos ilustra com a narrativa de Alice no País das Maravilhas, isto porque lá não existiria o direito de precedência nem hierarquia entre orador e interlocutor. “ ‘Acho que você deveria dizer-me, primeiro, quem é’. – ‘Por quê? Pergunta a lagarta’. Em nosso mundo hierarquizado, ordenado, existem geralmente regras que estabelecem como a conversa deve iniciar-se, um acordo prévio resultante das próprias normas da vida social.” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 17).
[8]O sobre o gênero deliberativo seria típico das assembleias legislativas e dos discursos políticos. Quanto ao segundo, o gênero judiciário, fala-se sobre o passado, pergunta típica é: “houve crime?” ou “ele é culpado?”. O último gênero epidíctico versa sobre a exaltação de valores sociais, este seria típico de discursos fúnebre ou elogiando algo ou alguém. O interessante é notar que esses gêneros são predominantes sobre uma área, mais isso não impossibilita que eles se sobreponham. Na verdade é comum o orador utiliza-los de maneira intercalada, não necessariamente seguindo essa ordem.
[9]Em nenhum momento dos discursos da acusação nem da defesa houve perguntas sobre as circunstâncias do crime, muito menos de provas da existência do crime foram apresentadas. Lembrem: “quando algo é julgado, o que realmente estamos julgando?”.

A JUSTIÇA MORREU

José Saramago

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI), os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar.

Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça, porque a Justiça está morta.”

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das extremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça.

Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido… Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as extremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo…

Esses sinos novos são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam por uma nova justiça distributiva e comutativa

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia.

Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.

Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

Continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo.

Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.

E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo certas conhecidas minorias eternamente descontentes…
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

* Carta de José Saramago lida durante o II Fórum Social Mundial.