Josias Alves de Freitas[2]
josiasalves@outlook.com
INTRODUÇÃO
Este esforço trata da importância de compreender que a
ação ética nos mais diversos âmbitos das profissões é essencial, sobretudo, nas
que diretamente estão ligadas ao âmbito jurídico, ainda que minimamente, para que
todos possam tornar-se ativos na elaboração, construção e condução da
sociedade, participando como cidadãos responsáveis pelo rumo de sua própria
existência.
A reflexão sobre essa ação não chega
a cessar nos tempos atuais, apesar de que para as mais diversas profissões são
elaborados códigos de ética das profissões como forma de evitar o
desvirtuamento não só do ser humano em suas relações de trabalho, mas também
como forma de evitar que o exercício profissional perca um caráter abstrato de
dignidade. São normas de conduta, que abrangem sanções ao seu descumprimento
até, mesmo que sob o nome de código de “ética”. São também normas que
demonstram certa eficácia, e sobre as quais incide uma reflexão, e se legitimam
alicerçadas no que se diz ser o motivo pelo qual estão postas, simplesmente, na
tentativa de esclarecer sua existência.
Este trabalho, que é, sobretudo,
explanativo, trata em num primeiro momento sobre o agir ético, desde o contexto
da Antiguidade até a crise do conceito ético-político na Modernidade e o
paradoxo de liberdade e, posteriormente, do problema da relação intrínseca
entre o agir ético e a norma positiva no âmbito profissional, forma sob a qual
esse agir apresenta-se hodiernamente.
1 A
INDISSOCIABILIDADE ENTRE ÉTICA E ESCOLHA
Antes, portanto, de compreender aquela
(ou mesmo aquelas) importância do agir ético, faz-se necessário tentar, pelo
menos, entender porque o ser humano se distancia dessa forma de agir,
principalmente quando não lhe é imposto, categoricamente, que aja eticamente,
em qualquer das relações sociais. Já PLATÃO, filósofo da Antiguidade, em sua
obra A república, enumera uma série
de circunstâncias oferecidas pelos interlocutores de Sócrates, que dizem
respeito a motivos pelos quais os homens, dentro de determinado contexto,
preterem a justiça em favor de si próprios: “O primeiro de tais indivíduos ao
qual se apresenta a possibilidade de cometer uma injustiça é o primeiro a
cometê-la na medida em que pode” (PLATÂO, 2005, p. 43-44). Apesar do esforço
para provar que é melhor agir com justiça, que esta é um bem que deve ser
buscado acima da injustiça, foi mais válida a reflexão acerca desse tema, e não
somente esta, como também a crítica e a valoração que permitissem, na busca por
uma estabilidade da vida coletiva e do senso de justiça, um posicionamento
efetivo diante das várias formas de agir:
[...] as pessoas comuns colocam-na na espécie de bens
que custam esforço, daqueles bens que devem ser praticados para proporcionar
recompensa e satisfação, mas que, por si próprios, devem ser evitados como
molestos (PLATÂO, 2005, p. 32).
Ainda assim, fica claro no decorrer da obra, a
importância da lei, e como esta está relacionada, dentro das reflexões acerca
da justiça, às necessidades sociais, e deixa importante contribuição, no
sentido do conhecer, buscado por todos os que participaram na obra platônica,
como forma de alcançar o ser e agir virtuosamente:
[...] Ora, em nossa opinião, que efeito terá sobre as
almas dos jovens ouvir essas histórias? Entendo aqui aqueles jovens que
felizmente são dotados e, como capazes de refletir a respeito e concluir como
deve ser um homem e qual caminho deve percorrer para passar a vida da melhor
maneira (PLATÃO, 2005, p. 41).
Diante da crise moral e política que se instaurou na
Antiguidade, fomentada pelas ideias da relativização da justiça, a lei é
apontada como um “veículo” através do qual o homem se tornaria virtuoso, na
medida em que a lei só a é enquanto materializa a justiça. Aristóteles
indica-nos: o que está de acordo com a lei é justo.
Da mesma forma que normas e princípios estão intrinsecamente
ligados, também a lei remonta a valores, que o ser humano tem consigo, ao mesmo
tempo em que interioriza e age em conformidade com aqueles princípios. É então,
perfeitamente válido estabelecer papel crucial à educação enquanto meio para a
preservação do bem social. O conflito exposto nos momentos iniciais de A república, encontram mais tarde, com Aristóteles,
sob outra ótica, o ideal de justo que consolidou-se na Antiguidade, e persistiu
enquanto pôde.
Agnes HELLER, (1998), indica a grande crise do
conceito ético-político de justiça, em sua obra Além da Justiça, e nos demonstra, respaldada em contribuições de
diversos pensadores analisadas criticamente, sobretudo políticos e da
sociedade, o paradoxo da liberdade, construído quando da retomada da razão, na
Modernidade, em que houve uma série de quebras e construção de paradigmas, com
a exposição do problema ético, quando o homem precisa definir objetivos
estabelecendo qual a melhor conduta individual, mas também social, na busca
pelos fins que almeja. Ao fazê-lo, portanto, expõe a ausência e a
impossibilidade do reconhecimento de um critério universal que reconheça
justiça e injustiça, e propõe uma redefinição do conceito formal de justiça,
que encontrava-se bem definido na Antiguidade, e a qual acreditava-se ser um
bem natural, assim como para Aristóteles, em Etica à Nicômaco, quando chama
[...] de absolutamente completa uma coisa
sempre eleita como uma finalidade e nunca como um meio. Ora, a felicidade,
acima de tudo mais, parece ser absolutamente completa nesse sentido, uma vez
que sempre optamos por ela por ela mesma e jamais como meio para algo mais (ARISTÓTELES,
1991, p. 231).
HELLER articula que na Antiguidade, sabia-se o que era
certo e bom (1998, p. 113), enquanto que na Modernidade, o paradoxo da
liberdade gira em torno da seguinte questão: o homem é livre, e tenta afirmar
sua liberdade, ao mesmo tempo em que, enquanto ser social, deve se deixar
limitar sob pena de inviabilizar sua própria liberdade. KANT (1994, p. 73) determina
que “é justa toda ação ou máxima da ação que possa permitir a coexistência da
liberdade do arbítrio de um com a liberdade de outro segundo uma lei universal”.
O racionalismo kantiano (que redunda no idealismo hegeliano) dita que os homens
governam-se com base nas leis inteligíveis (racionais) e naturais (sensíveis),
tendo a razão humana incidindo nos objetos. Esse entendimento, segundo HELLER,
é crucial para que se chegar a conclusões precisas relacionadas à ética
kantiana, pois o autor declara a razão como um instrumento incapaz de fornecer
todas as explicações e produzir todas as deduções necessárias para explicar as
razões últimas das coisas, inclusive da escolha pelo agir ético:
[...] Esse mundo não significa outra coisa a não ser
um algo que restou quando exclui dos fundamentos que determinam minha vontade
em tudo o que pertence ao mundo sensível, só para reincluir o princípio das
causas motoras no campo da sensibilidade, limitando-o e mostrando que não o
compreende in totum, mas sim que fora
dele existe algo mais; este algo mais, contudo, desconheço-o (KANT, 1994, p.
120).
Kant, em Crítica
da razão pura, admite que haja, desconsiderando os efeitos da felicidade, “leis
morais puras, que determinam completamente a
priori o fazer e o não fazer” (KANT, 2006, p. 97).
2 ÉTICA
PROFISSIONAL E O DIREITO POSITIVO
As leis positivas, segundo Hegel, são a forma de o
Estado, que teve seu papel alterado nas relações sociais enquanto seu mediador,
limitar as intenções paradoxais que se estabeleceram na Modernidade (ainda que
a conceituação desta não tenha se dado com o presente nome), com a emergência e
prevalência dos interesses particulares. Ao retomar as concepções da filosofia
prática de Aristóteles, e ao tratar especificamente do Direito, determina seu
objeto filosófico: a razão do Direito, e o expõe enquanto “auto-realização, a
estrutura que se transforma em mecanismo que processa a necessidade da
concretização da liberdade como fundamento do mundo moderno” (HEGEL, 1990, p
225). HABERMAS, ao tratar sobre Hegel, diz em sua obra, O discurso filosófico da modernidade, que ele “descobre o
princípio dos tempos modernos: a subjetividade (...). [E que] os históricos
acontecimentos-chave para o estabelecimento do princípio da subjetividade são a
reforma, o iluminismo e a Revolução Francesa” (1990, p. 27). A questão colocada
é justamente sobre a subjetividade, ou liberdade, do indivíduo, e como evitar a
desestruturação da sociedade quando da elevação humana ao plano da liberdade
absoluta. PLATÃO, entretanto, já nos alertara sobre a “injustiça absoluta” e
sua intrínseca relação com a liberdade em A
república.
Retomando a questão exposta inicialmente, sobre as
leis, temos reflexos desses movimentos modernos na hodiernidade, sobretudo das
heranças positivistas, no que concerne ao âmbito das profissões, mais
especificamente, dos juristas, e encontramos em BITTAR uma ampla dissertação
sobre o problema exposto inicialmente neste trabalho. O referido autor nos diz
que:
[...] O jurista passou a ter limites em sua atuação, e
esses limites passaram a ser os horizontes do jurista; limitado ao que é
normativo, consequentemente, o jurista, em sua miopia intelectual, passou a ser
a primeira vítima das alterações legislativas (BITTAR, 2013, p. 419).
Essa limitação constitui um grave perigo, ante a
importância das profissões jurídicas na sociedade: os profissionais devem ter
“consciência ética”, pelas consequências jurídicas de seus atos, que geram
efeitos sobre os mais diversos setores sociais. O profissional deve estar
atento às necessidades sociais, tendo em vista os desdobramentos de seus atos,
entendendo que interfere na “conduta e no comportamento das pessoas, e em sua
forma de se organizar e distribuir socialmente” (BITTAR, 2013, p. 418).
Encontramos no mesmo autor, considerações acerca do
primeiro problema exposto, quando retrata a limitação da liberdade ética do
profissional, em uma crítica, quando da exigibilidade do compromisso social das
ações do profissional, a qual é circunscrita às exigências da corporação ou
instituição que controla seus atos. O agir ético tem, de uma forma ou de outra,
importância tal que foi necessária, ante um grande numero de códigos de ética
profissional, “incentivar” sua prática, no cumprimento dos deveres segundo
valores e princípios característicos de cada profissão, com vista ao seu fim,
seu objetivo e os efeitos das atividades profissionais, que BITTAR (2013, p.
411) define como o dever ético de ser.
Quanto ao entendimento de que o ato é ético quando
corresponde, em detrimento do particular, do indivíduo, ao interesse público
tendo em vista um fim almejado mais vantajoso, ou para a maioria, ou para
evitar prejuízo para a mesma, ainda que cause dano à minoria, RAWLS critica o
utilitarismo, que corresponde a esse pensamento exposto. O entender do autor,
pela sua importância, ao elevar acima do plano teleológico o agir ético à forma
e condições em que se dá a ação, mesmo que num plano abstrato de condições, e
sob um contrato hipotético, para que a mesma seja, então, ética, tem em vista o
ideal de que as pessoas possam “viver de forma autônoma, ou seja, que possam
decidir e levar adiante livremente o plano de vida que consideram mais
atraente” (RAWLS apud GARGARELLA, 2008,
p. 30). Constitui, pois, um desejo válido, de instaurar, no seio da atualidade,
um conceito ético que concilie obrigações sociais e liberdade pela forma em que
se dá a escolha.
CONCLUSÃO
A partir dessas explanações, sobre o escolher agir
eticamente, e a busca por esse modo de agir e as formas com que surge e se dá
ao longo da história humana desde a Antiguidade, demonstramos a preocupação que
tem o ser humano em refletir racionalmente sobre as suas ações, o que ratifica
o papel da ética enquanto objeto de reflexão e análise, ensejando, neste
esforço, sua aplicabilidade no âmbito das profissões: da profissão em si, e do
profissional. Como forma de demonstrar um dos entendimentos hodiernos, a grande
quantidade de códigos de ética reflete esse ensejo.
Tomamos uma citação de WARAT, ao tratar em uma de suas
obras, O outro lado da dogmática jurídica,
sobre o direito instituído e as suas razões:
[...] Não existe compromisso com o outro sem a lei
(...). Poderia se dizer que a busca por uma nova articulação entre legalidade-ética
e razão é o grande debate político que tem que atravessar o pensamento jurídico
na transmodernidade para não obstruir as possibilidades de uma mudança de
atitude nos homens e nos objetivos, que assegure o ressurgimento, em forma
inovadora do truncado projeto de autonomia. (WARAT, 1994, p. 85-95).
Podemos dizer que a lei é, então, necessária, como
instrumento capaz de guiar, a priori,
a ação humana no exercício das profissões. No entanto, o entendimento, desde a
Antiguidade, sobre o ser em lugar de dever ser ético, demonstra a persistência
da preocupação com a questão, que no espaço brasileiro não antecipa uma resolução
simples de se implementar. Além disso, temos um recorrente problema de
adequação das diferentes concepções teóricas que lutam por seu espaço.
ARISTÓTELES. Ética
a Nicômaco; In. Os Pensadores;
seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. 4. Ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
BITTAR, Eduardo C. B.. Curso de ética jurídica: ética
geral e profissional. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
GARGARELLA, Roberto. A teoria da justiça de John Rawls. In. As
teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de
filosofia política. Trad. Alonso Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008,
p. 01-31.
HABERMAS, Jürgen. O
discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo; José Rui
Meirelles Pereira; Manuel José Simões Loureiro; Maria Antonia Espadinha Soares;
Maria Helena Rodrigues de Carvalho; Maria Leopoldina de Almeida; Sara Cabral
Seruya. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães, 1990, p 225.
HELLER, Agnes. A dissolução do conceito ético-político
de justiça modernidade. In. Além da
justiça. Trad. Savannah Hartmann. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998, p. 111-144.
KANT, Immanuel. Crítica
da Razão Pura. Tradução: J. Rodrigues de Merege. 2006. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000016.pdf>. Acesso em: 15 de Dezembro de 2013.
______________. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. In. Immanuel Kant: Criticismo e deontologia. Trad. Lourival de Queiroz Henkel, Lisboa: Edições 70, 1994.
PLATÃO. A república – livros I e II.
In. MAFFETTONE, Sebastiano; VECA, Salvatore. (Org.). A
idéia de justiça de Platão a Ralws. Trad. Karina Jannini. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 211-216.
WARAT, Luís Alberto. O outro lado da dogmática
jurídica. In. Teoria do Direito e do Estado.
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 85-95.