terça-feira, 19 de junho de 2012

A CIÊNCIA DO DIREITO: Panorama histórico[1]

GESSANDRO VITORINO DE SOUZA[2]
gessandrovitorino@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

            O presente trabalho busca conhecer e identificar as variadas percepções que as sociedades possuíram do conhecimento do Direito ao longo do tempo e das Histórias destas muitas sociedades. Tércio Sampaio Feraz Júnior observou o desenvolvimento do saber jurídico preocupado em visualizar as várias roupagens que o pensamento do Direito (ou teorização jurídica) utilizou enquanto Ciência e/ou saber. Começando pela sociedade romana antiga, passando pela sociedade medieval, avançando pela modernidade e atingindo a contemporaneidade, compreende Tércio que, o referido desenvolvimento não foi linear, havendo avanços e recuos nos diferentes tempos, espaços e culturas.

1 A JURISPRUDÊNCIA ROMANA

            Assim como as demais sociedades pré-modernas (Índia, China, Grécia, entre outras), Roma evoluiu das primitivas comunidades aproximadas pelo critério do parentesco, no qual o pátrio-poder era o elemento característico do que se entendia por Direito. As relações privadas foram determinadas por esse entendimento até que as transformações materiais e de mentalidade ocorridas na sociedade promovessem uma reestruturação do entendimento de Direito.
            O aparecimento da Urbs[3] e da Civitas[4] levou os romanos a pensarem o exercício do Direito sob a perspectiva do ponto de vista do Centro Político (FERRAZ JÚNIOR, 2003). Neste caso, buscava o Direito ser um elemento de equilíbrio no convívio dos sujeitos que passavam a ser cidadãos.[5] Mas “por que jurisprudência e não júris scientia?” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 18). Efetivamente os romanos não se dedicaram a responder esta pergunta, antes, preocuparam-se com a práxis jurídica. Apesar dessa forma de aplicação do Direito podemos pensar em Ciência no sentido de saber prático (FERRAZ JÚNIOR, 1980). “De modo geral, todos concordam que um dos mais importantes legados deixados pelos romanos às culturas que os sucederam foi seu sistema de direito” (BURNS, 1998, p. 163).
              “A práxis era tipicamente romana” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 20), e com ela construíram uma técnica dicotômica de construir conceitos: “jus publicum” e “jus privatum”, “res corporales” e “res incorporales”, porém estes conceitos não foram obra exclusiva da práxis e tiveram influência do modelo de conhecimento e saber dos gregos como a filosofia, a gramática e a retórica.
              Inicialmente o Direito (jus) era um fenômeno de ordem sagrada, ligado a sua fundação, portanto, base da cultura e da tradição (FERRAZ JÚNIOR, 1980). O que delineou o desenvolvimento e a expansão da urbs. Esse Direito era uma atividade ética. Entendendo-se por isso a Prudência (virtude moral de equilíbrio, julgamento ponderado), sendo que a Jurisprudentia era, ainda, apenas um quadro regulativo geral.
              Assim, é possível querer classificar o pensamento jurídico romano nos moldes de uma teoria da ciência, e, assim sendo, é melhor enquadrá-lo na tradição aristotélica, que busca compreender a coisa como ela é em sua causa, relação e necessidade, sendo este conhecimento um saber universal da essência (FERRAZ JÚNIOR, 1980). O silogismo (3 proposições) e a prudência (justeza construída pela dialética) são instrumentos deste conhecimento. “Aqui se enquadra a jurisprudência romana, cuja racionalidade dialética a torna tipicamente um saber prudencial” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 20).
              Assim, o Problema é visto, não mais pelo fato em si, mas na busca de argumentos de outros casos com nexos entre si, criando uma regra geral que se aplique àquele problema inicial e a todos os demais casos futuros. Os fatos passam a ser interesse jurídico e assim ocorre a aplicação do Direito. Esse entendimento e atitude do Direito pelos romanos que, nos séculos seguintes, motivaram reformas que tentaram dar-lhe um caráter de “ciência” de acordo com um modelo racional matemático teve a participação da autoridade como elemento mediador. Entendendo esta autoridade como a mantenedora da cultura (religião – rligares), sendo esta manutenção não no sentido estático, mas ampliadora da Fundação da urbs.
              “De certo modo, graças à tríade religião/autoridade/tradição, a jurisprudência deu ao Direito uma generalização que a filosofia prática dos gregos não conseguira” (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 60).
2 OS GLOSADORES

              Para entendermos melhor este momento do pensamento jurídico europeu e necessário contextualizá-lo historicamente.
              Na transição da cultura romana para a cultura medieval há um importante elemento a ser assinalado: o advento do Cristianismo. Devendo ser necessário distinguir cristianismo enquanto religião (relação pessoal do homem com Deus) e cristianismo enquanto instituição (relação denominacional fundada da articulação do Bispo de Roma e da autoridade política imperial decadente). A autoridade denominacional corrompida que surgiu, logo tratou de formalizar os ordenamentos religiosos privados como ordenamentos públicos de caráter político e de aplicação jurídica. A ampliação do poder do Bispo de Roma para o caráter de autoridade política foi definidor de uma nova relação de Direito que perpassava por uma dogmatização de preceitos religiosos tornando-os universais e com validade e aplicação em todo o Império Romano. Com a criação das Universidades Medievais foi possível a um conjunto de pensadores resenhar, criticamente, os Digestos Justinianeus, os quais foram transformados em textos escolares de ensino das universidades. Bolonha foi um dos principais centros deste fenômeno. Considerados indiscutíveis, esses textos antigos foram submetidos a uma técnica de análise explicativa baseada no Trivium[6], caracterizando-se pela glosa[7] gramatical e filológica, daí a expressão “glosadores” atribuída aos juristas de então.
              O trabalho do glosador era exegético, pois os textos nem sempre concordavam entre si, surgindo as (contrarietates), as quais levantavam (dubitates) conduzindo o jurista a uma (controversia, dissentio) ao cabo da qual se chega a uma (solutio), a qual era obtida quando se chegava a uma concordância. Havia, ainda, uma hierarquia entre os textos de acordo com a dignidade de sua autoridade e a distinção entre eles. Os livros com autoridade eram o Corpus Juris Civilis de Justiniano, o Decretam de Graciano, as fontes eclesiásticas canônicas e a coleção de decretos papais. O pensamento prudencial romano não desapareceu, mas teve seu caráter mudado de casos problemáticos para casos paradigmáticos, que deveriam traduzir uma harmonia. Nesse sentido a prudência se fez dogmática.
              Por volta do século X foram retomadas as tentativas do Sacro Império Romano Germânico de concluir sua ampliação dobre o Regnum Italicum. Entretanto, o norte da Itália seguia uma ordem de organização social e política diferente daquela comum ao restante da Europa.     A vitória dos Lombardos e Toscanos não se resumiu ao campo militar, pois, mais além, produziram armas ideológicas de legitimação de sua liberdade, quer seja a libertas (soberania), quer seja a liberta (autogoverno) que resulta da primeira (SKINNER, 1996).
              O problema maior estava na legalização desta liberdade, pois todos os decretos e leis apontavam para o Imperador do Sacro Império o título de Dominus Mundi, portanto era o governante supremo, em todos os tempos, sobre todos os seus súditos, de todas as partes. Para os glosadores, até então, era impossível não ver no Imperador do Sacro Império o Princips do Código de Justiniano.


No século XIV, porém, ante ameaças que se renovavam por parte dos imperiais, finalmente se produziu a alteração da perspectiva que se fazia necessária. A grande figura nessa reorientação, o fundador da Escola que se chamaria de Pós-glosadores foi Bartolo de Saxoferrato[8], talvez o mais original dos juristas da Idade Média (SKINNER, 1996, p. 30).


              A proposta de Bartolo foi tão revolucionária quanto simples. Enquanto os glosadores diziam que, quando a lei se mostra descompassada com os fatos legais, são estes que devem se acomodar àquela para se conseguir uma interpretação literal da mesma. Enquanto isso, Bartolo adota como preceito único que, quando a lei e os fatos colidem, é a lei que deve se conformar aos fatos (SKINNER, 1996).

3. OS JUSNATURALISTAS DA ERA MODERNA

              “A partir do Renascimento, o Direito irá perder progressivamente seu caráter sagrado. E a dessacralização do Direito significará a correspondente tecnicização do saber jurídico e a equivalente perda de seu caráter ético, que a Era Medieval cultuara e conservara” (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 65). A ruptura da Era Moderna em relação à Era Medieval se dá no campo do método, no qual esta indagava sobre as morais do bem na vida, enquanto que aquela indagava sobre as condições efetivas e racionais de sobrevivência. A crítica dos modernos jusnaturalistas aos glosadores era de que estes não possuíam uma sistematicidade na formulação de suas teorias. Conceituar “sistema” (mecanismo, organismo e ordenação) foi a maior contribuição do Jusnaturalismo, que passa a ver o homem como um elemento de um mundo concebido segundo leis naturais.
              Ferraz Júnior (1980) reconhece em Pufendorf o típico exemplo da sistemática jurídica moderna jusnaturalista que sintetizou o conhecimento jurídico de sua época, mormente na Alemanha, até o século XIX. Parte da ideia de que o Direito Natural possui um princípio que se identifica imperativo na qual a Norma obriga ou proibi o indivíduo a uma determinada ação e outro princípio indicativo. A sistemática desenvolvida na base destes princípios se caracteriza pela associação da dedução racional com a observação empírica e, com isso, divide as normas do direito natural em Absolutas e Hipotéticas. A teoria jurídica passa a ser um produto da razão e instrumento de crítica da realidade.

4 A ESCOLA HISTÓRICA

              Na transição do século XVIII para o século XIX, destacou-se Gustav Hugo (1764-1844) que desenvolveu uma nova sistemática para a Ciência do Direito, acentuando a relação do Direito e sua dimensão histórica. Ainda, compreende uma divisão em três partes do conhecimento científico do Direito: dogmática jurídica (o significado de legalidade), filosofia do direito (é racional que esta legalidade seja efetivamente legal?) e história do direito (como esta legalidade se tornou legal?). Tentando, assim, perceber direito positivo como fenômeno histórico.
              O grande mérito da Escola Histórica foi haver assumido o caráter científico da Ciência do Direito (Jus Scientia). A sistematização do Direito era verificada na historicidade do próprio Direito, e forjava a dogmática jurídica, entendida como teoria do direito vigente. Ou seja, o estudo ciêntifico (histórico) do Direito Romano visava o estabelecimento daquilo que ainda era utilizável no presente. Abrindo assim as alas para uma concepção mais positiva do direito.

5 O POSITIVISMO

              Por positivismo entenda-se tanto a doutrina de Augusto Comte, quanto aquelas doutrinas que se ligam a esta. Ele trata, basicamente, da limitação da ação humana nos fenômenos. Podendo aquela apenas interferir na intensidade deste, mas jamais na sua natureza. Negando também a metafísica, dava-se preferência às ciências experimentais e a confiança exclusiva no conhecimento dos fatos.
              A corrente positivista jurídica foi muito mais do que uma tendência científica, foi também uma busca pela segurança da sociedade burguesa. Partindo do pensamento dos Iluministas e passando pela Escola Exegética. Esse sistema se confirmou de tal modo àquela época que se entendia que não havia direito que não o Direito Positivo.
              Ele apresenta como característica a percepção de um sistema jurídico perfeito, acabado e fechado; as lacunas são apenas aparências e a generalização da norma posta é suficiente para atender a todas as demandas. Além desta característica, podemos notar que o positivismo continuou com a tradição jusnaturalista de método sistemático da Ciência Jurídica. Ainda, pela abstração e generalização e pela regressão de proposições hipotéticas muitos elevaram a Ciência Jurídica à condição de Ciência da Natureza.

6 O SÉCULO XX

              No início do século XX as inquietações metodológicas do século anterior continuam em evidência e com Kelsen, a questão pandectista é aperfeiçoada, forjando a Normativa.
              Objetiva Kelsen ao sistematizar a Ciência Jurídica, isentá-la de influências de conceitos que fugissem daquilo que era exclusivamente do Direito, daí chegar a conclusão da Norma.
              Vontade, imputação, pena e delito são conceitos-chaves no pensamento de Kelsen.


Nesse quadro, a ciência dogmática do direito, na tradição que nos vem do século XIX, prevalecentemente liberal, em sua ideologia, e encarando, por consequência, o direito como regras dadas (pelo Estado, protetor e repressor), tende a assumir o papel de conservadora daquelas regras, que, então, são por ela sistematizadas e interpretadas (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 82).


7 CONCLUSÃO

            Um reconhecimento da variada forma de se pensar e de se teorizar o Direito ao longo do tempo, em diferentes sociedades e culturas, nos permitiu perceber que a Ciência do Direito foi muitas vezes concebida como um instrumento da manutenção do status quo, sendo, outras vezes, usada como instrumento de legitimação e legalização da mudança de regras ou de poder. Contudo, sempre coube ao jurista uma ação importantíssima, comum a qualquer época, a ‘decisão’. Conseguir dar uma resposta, solucionar uma querela.
            Para essa decisão se tornar eficiente e legítima coube sempre ao jurista o uso de técnicas que, quaisquer que fossem elas, deveriam ser consagradas ou, ao menos aceitas, pelas teorias que norteavam a sua realidade social e histórica. Ainda hoje a Decisão é uma tarefa que requer um constante processo de aprendizagem, de reconhecimento da natureza dos conflitos, de identificar sua própria condição de poder de controle e da aplicação da mesma. Decisão é um dos objetivos, senão o objetivo final da Ciência do Direito.
8. REFERÊNCIAS

BURNS, Edward McNall, LERNER, Robert E., MEACHAM, Standish. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas às naves espaciais. 38. ed. São Paulo: Globo, 1997.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Panorama histórico. In. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 18-39.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. 4d. São Paulo: Atlas, 2003.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras. 1996.



[1] Ensaio referente à matéria Introdução à Ciência do Direito ministrada pelo Professor Dr. Luiz Otavio Pereira.
[2] Discente regularmente matriculado no curso de Bacharelado em Direito na Universidade Federal do Pará/Instituto de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito com o número de matrícula: 12641009801.
[3] Cidade-Estado.
[4] Cidadania romana.
[5] Cidadão é o homem livre ou civis. A liberdade é um status característico do cidadão. (nota minha)
[6] Currículo acadêmico das artes liberais organizado nas seguintes disciplinas: Gramática, Retórica e Dialética.
[7] Glosa: nota explicativa sobre as palavras ou o sentido de um texto. Comentário. (nota minha)

[8] Foi um jurisconsulto medieval, um dos mais notáveis comentadores do Direito Romano. É considerado o maior jurista da Idade Média.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Boaventura de Sousa Santos: autoritarismo gradual enfraquece direitos




DEMOCRACIA - 14/06/2012
Daniel Avelino/UnB Agência
Boaventura de Sousa Santos: autoritarismo gradual enfraquece direitos
Em conferência no Palácio do Planalto, sociólogo português diz que a especulação financeira provocou a desorganização do Estado e defende que o sistema democrático precisa ser distributivo
Ana Lúcia Moura - Da Secretaria de Comunicação da UnB
Fonte: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=6706
Com os olhos miúdos, atrás das lentes dos óculos, fixos na plateia que lotou o auditório do anexo do Palácio do Planalto, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos deu o alerta: “a democracia está em perigo”. Aos 72 anos, cabelos brancos, e uma trajetória de quatro décadas de estudos que o tornou um dos estudiosos da democracia mais respeitados do planeta, tratou logo de esclarecer. “Isso pode parecer estranho em um mundo onde a democracia é cada vez mais hegemônica, mas ela entra pela porta transversa e, com um autoritarismo gradual, vai minando direitos”, disse.

Ao lado do reitor José Geraldo de Sousa Junior, com quem compartilha debates desde o final dos anos 1970, e de representantes da Presidência da República e do Conselho Nacional de Saúde, organizadores da conferência Colóquio Interconselhos, Boaventura de Sousa Santos resumiu seu raciocínio em uma frase. “O que está a se passar é a suspensão da democracia”, disse. “A especulação financeira fez com que o Estado se desorganizasse. O Estado não pode intervir muito na saúde, na educação, porque está preso a uma lógica de mercado. As reformas estruturais estão a ser adiadas. O Estado está tão reacionário, tão oligárquico quanto antes. O capitalismo só quer a democracia se ela lhe der lucros. A democracia tem de ser distributiva.”

Para elucidar a afirmação, o teórico tomou como exemplo a crise europeia. “O que está acontecendo é o empobrecimento da Europa. Cortes salariais, cortes nas pensões, cortes nos direitos essenciais, cortes nos serviços públicos, privatização, da saúde, da água, com consequentes ataques aos imigrantes. Já vimos tudo isso nos outros continentes, e é desta aprendizagem recíproca que podemos ganhar alguma coisa”, ensinou.

Boaventura de Sousa Santos atribui os acontecimentos a uma certa “arrogância imperialista”, reforçada pela ideia de que há um grupo de países desenvolvidos e os demais são subdesenvolvidos. “Esse modelo fez com que se pensasse que o subdesenvolvimento era um estado inicial pelo qual todos os países teriam de passar para chegar a um estágio final, o desenvolvimento. Foi uma armadilha teórica muito bem feita, e que os cientistas sociais aceitaram de maneira acrítica, porque nunca se puseram a pensar nas suas verdadeiras origens, e nunca puderam ver com atenção o muito saber criado em continentes como África e Ásia sobre estes conceitos fundamentais”, analisou. “O que os fatos recentes, como a crise na Europa, nos mostram é que esta flecha do tempo, que vai do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, deve ter tomado muita cachaça e deve estar louca, porque são os países desenvolvidos que estão a se subdesenvolver”, disse.

O raciocínio, apresentado com naturalidade e lucidez nesta quarta-feira, 13 de junho, abriu a fala do sociólogo em palestra assistida principalmente por representantes de conselhos, estudantes e professores universitários. Em aproximadamente 40 minutos, Boaventura ensinou aos gestores ali presentes como os conselhos representativos podem ser instrumentos para ampliar a democracia, garantir que ela se fortaleça em seu sentido original e se aprimore para um modelo mais participativo. “A democracia que temos não é falsa, é pouca, precisa de complementos que a reforcem”, recomendou. “A democracia não pode ser só representativa, mas participativa. Direitos não são quantidades, são relações”, reforçou José Geraldo. “No Brasil, construímos a democracia sem fazer algumas rupturas necessárias”, completou Maria do Socorro de Souza, representante do Conselho Nacional de Saúde e de outros 36 presentes no encontro.

Após as considerações iniciais, o sociólogo expôs os quatro argumentos com que mostra por que a democracia está em perigo:
Desorganização do Estado
“A especulação financeira fez com que o Estado se desorganizasse. O Estado não pode intervir muito na saúde, na educação, porque está preso a uma lógica de mercado. As reformas estruturais estão a ser adiadas. O Estado está tão reacionário, tão oligárquico quanto antes. O capitalismo só quer a democracia se ela lhe der lucros. A democracia tem de ser distributiva.”

Esvaziamento da democracia
“A democracia está nas funções, mas não cumpre suas funções. O abismo entre representantes e representados nunca foi tão grande. Hoje na política, tudo se compra, tudo se vende, por isso a corrupção é uma chaga tão grande.”

Desvalorização do trabalho
“Nunca se trabalhou tanto e nunca se fizeram tantos muros para impedir a passagem de imigrantes. A desvalorização do trabalho é tão grande que começa a ser difícil distinguir trabalho pago de não pago. Não há distinção entre tempo livre e tempo do trabalho. A forma mais cruel do trabalho não pago é o tempo perdido procurando trabalho.”

Destruição da natureza
“Aqui bem perto, na Bolívia e no Equador, vemos a ação do capitalismo. É a mineralização a céu aberto, é a destruição dos territórios indígenas, é a destruição dos ecossistemas, é a explosão de montanhas para explorar minérios, com grande contaminação da água, essa é a outra face da chamada acumulação primitiva, e que, longe de ser uma forma de capitalismo, é uma constante de capitalismo. Muito do conhecimento técnico está relacionado com interesses de grandes empresas e serve a essa exploração. Tudo é representado de maneira técnica e fria. O valor do conhecimento é o valor do mercado do conhecimento.”