domingo, 18 de março de 2012

REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA

O Professor Ronaldo Poletti, professor de longa data de nossa Faculdade de Direito e recém-aposentado, publica o teor de sua última aula, ministrada em 14 de dezembro de 2011 e intitulada "Reflexões sobre a Justiça".

REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA 

Sumário: 1. A democracia social. 2. Igualdade. 3. Liberdade. 4. Fraternidade. 5. Jurisdição.
A DEMOCRACIA SOCIAL
Os filósofos, mais do que os juristas, têm se dedicado ao tema da justiça, talvez porque justiça e direito sejam coisas diferentes, situadas em mundos que não se confundem. O direito integra o mundo da cultura por oposição ao da natureza, enquanto a justiça é um ser ideal, como um valor. O direito está impregnado de valores, mas com eles não se identifica. É que o homem constroi a ordem jurídica para si e ele é um ser que age na direção de fins eleitos (valores) pela sua vontade livre. A justiça está sempre situada no plano deontológico. Uma busca incessante, como a verdade para a filosofia. Os romanos, por isso, disseram que a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu, vale dizer o seu ius. Nada que ver com o direito subjetivo dos modernos, mas como algo que decorre da situação do homem em concreto.
Foram construídas e ainda o serão inúmeras teorias sobre a justiça. Nenhuma delas, que me lembre, exauriu-se nas especulações sobre a prestação jurisdicional. No fórum, a justiça está como um doente no hospital. Pode salvar-se, ou não.
Desde Aristóteles, insiste-se na idéia de identificar a justiça com a igualdade, seja absoluta, seja relativa. Ainda recentemente John Rawls adotou o critério racional e abstrato do contrato social, como Locke, Hobbes, Rousseau e tantos outros, para inserir nele o pressuposto da igualdade e, a partir daí, estabelecer todas as deduções possíveis. Não muito distante está o prêmio nobel Armartya Sem, em livro que está na praça.
Dentre outros aspectos, a idéia de justiça passa pela formulação de um projeto político ideológico, cuja estrutura possibilitaria a realização concreta da justiça ou, pelo menos, atenuaria o drama da desigualdade, nem sempre injusta, porém dramática na exacerbação das diferenças que, em muitos casos, levam à miséria material. Assim, os marxistas pensaram no socialismo científico, na ditadura do proletariado, substituindo a da burguesia, na direção do comunismo, o governo das coisas e dos homens por si sós e realização de uma harmonia perfeita entre os desiguais por natureza. Os fascistas pensaram alcançar a justiça pelo Estado presente em cada um dos homens e verdadeiro deus na sociedade. Os liberais, crentes nas leis do universo em que tudo caminha por si, idealizaram o Estado de Direito em que o governo é mera polícia, intervindo apenas quando necessário, enquanto a liberdade individual reinaria como princípio absoluto, até na economia. Não demorou o grito de Lacordaire: entre o forte e o fraco, o patrão e o operário, o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza e é o direito que liberta.
Neste jogo, de idas e vindas, entre a hegemonia da liberdade ou da igualdade, inquestionável o fracasso estatal de todos os matizes. A liberal democracia do mínimo de Estado, a suprema realização do espírito do hegelianismo da direita ou da esquerda e, também, a social democracia (expressão marxista) redundaram em mais injustiça.
Se a idéia da justiça não prescinde de uma construção jurídica e política, o nosso tempo dirige-se para o consenso da democracia social (não é um mero jogo de palavras), onde as conquistas sociais convivam com a liberdade. Preservados o direitos, afastado o panestatismo, extintas as regalias e os privilégios, implantada a igualdade de oportunidades e a meritocracia, garantida a distribuição razoável das riquezas, sem que haja esbulho ou violência, poderemos, talvez, alcançar um Estado de Justiça e, não apenas, um Estado de Direito, ainda que democrático. Não apenas o governo das leis e não dos homens, mas uma sociedade onde as leis sejam expressão da vontade do povo e, ainda, de uma razoável proporção. O povo valerá mais do que o governo das instituições.
É lógico que os conflitos de interesse deverão ser resolvidos da melhor maneira e somente aí entram os juízes.
Aos juristas, no entanto, incluindo os magistrados, caberá a revelação da tendência do povo e expressá-la em suas interpretações, de maneira a construir-se uma democracia social, preservando-se os grandes legados do Ocidente Cultural (e aqui penso no caso brasileiro): o logos grego, a proporção do direito romano, a liberdade dos liberais, a igualdade dos socialistas (sem Estado) e a ideia da pessoa humana, o valor fonte de todos os valores. A democracia social parece ser o desaguadouro comum dos nossos ideólogos, a projeção de uma estrutura social, política e econômica, como condição para a realização da justiça.
A IGUALDADE
Enquanto a concepção de direito natural busca fundar-se na ideia de justiça, a experiência tem demonstrado que direito e justiça são coisas diferentes. A justiça, no máximo, pode ser um ideal para o direito, uma espécie de sonho, jamais alcançado. O homem, criador do direito, não parece ser justo. Basta ver a História e o dia a dia dos jornais da contemporaneidade. De qualquer maneira, intentamos sempre a construção de um regime político e jurídico que proporcione a justiça, ainda que não de forma absoluta e completa.
O fundamento da justiça tem sido, em inúmeras de suas projeções, a igualdade. E logo vêm os obstáculos. Há uma igualdade absoluta: todos nascem iguais, e por isso estão perante a lei em uma única posição. A lei, aliás, deve tratar a todos igualmente. Mas há uma igualdade relativa, consistente em tratar de maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades.
A sabedoria popular ironiza: todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros. Profliga-se, assim, a injustiça visível de um ordenamento jurídico, teoricamente, o bem estritamente comum, que permite a sua utilização a favor dos ricos e dos poderosos em detrimento dos pobres e dos despojados de qualquer poder.
O próprio Direito Romano consagra que pelo ius naturale todos são iguais, mas vem o ius gentium e cria a guerra, o domínio, a escravidão, a propriedade, gerando, assim, a desigualdade.
Diante disso, cai, ou pode cair por terra, a concepção positivista de que a lei é a medida concreta da justiça, o que nem sempre se confirma empiricamente.
Mas temos outros problemas em relação à igualdade. O princípio socialista expresso por Proudhon oferece uma séria problemática para a sua aplicação. Diz ele: de cada um, segundo a sua capacidade; a cada um, segundo a sua necessidade. A Constituição Soviética precisou enfrentar este problema. Como aplicar tal princípio em uma sociedade pretensamente de iguais, no socialismo como etapa revolucionária para o desfecho final do comunismo? Como retribuir parte de uma riqueza a quem não colaborou para a sua produção? Anote-se que a pergunta se coloca conforme o argumento capitalista, no sentido de distribuir o “bolo” apenas a quem com ele contribuiu. A União Soviética não hesitou. A Constituição de 1936 foi clara no seu art. 12: “Na U.R.S.S., o trabalho é um dever e uma questão de honra para qualquer cidadão corporalmente capacitado, de acordo com o princípio: ‘Aquele que não trabalha, não deve comer’. O princípio aplicado na U.R.S.S. é o do socialismo: ‘De cada um, de acordo com suas habilidades; a cada um, de acordo com seu trabalho’”.
Curioso! Um dos problemas do capitalismo está em que nem todos os que consomem, produzem. A acumulação do capital parece ensejar um maior número de privilegiados que não trabalham, mas vivem nababescamente. Aplicado o princípio comunista soviético no Brasil, aumentaríamos, para satisfação do Estado assistencialista, o número de famintos e suas bolsas eleiçoeiras. O pior, talvez, o mais grave, e, na aparência, desumano, está em que os soviéticos foram buscar a correção do princípio socialista utópico no Evangelho. Paulo, na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, explicitou: “Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e com fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também”.
Lógico é que, nem os soviéticos, e muito menos São Paulo, estavam afastando os excluídos da fortuna, ou pela idade ou pela incapacidade física, mas deixando claro que a igualdade na distribuição dos bens implica, salvo as exceções humanas justificáveis, a participação em sua produção, sob pena de a igualdade gerar desigualdade e injustiça. Daí que, identificar de maneira simples a justiça com o princípio da igualdade pode levar ao seu contrário, à injustiça, mesmo que se adote e se aplique a ideia da igualdade de oportunidades e a meritocracia, o que, por si só, também é problemático.
Sob outro ângulo, não basta que a lei seja igual para todos; é preciso que a lei seja a expressão da liberdade e, mais, que os mecanismos de distribuição, reparação e retribuição tragam, como fundamento, a caridade ou, se preferirem, a fraternidade.
A LIBERDADE
Claro está que direito e justiça são coisas distintas, embora não seja possível construir o Estado de Justiça e não meramente de Direito, sem uma estrutura política e jurídica compatível com esse fim. Essa estrutura, esse regime, como dissemos, está expresso na democracia social, onde se projetam e se concretizam os valores de um desenvolvimento social, político e econômico, que venha a gerar uma igualdade possível, sem prejuízo dos direitos do liberalismo clássico, como um legado da Cultura Ocidental, do qual não devemos abrir mão.
Identificar a justiça com a igualdade, conforme também acentuamos, não resolve a questão, necessitando-se, pelo menos, de dois outros elementos. Um deles a caridade, base de uma ação fraternal a justificar os acertos imprescindíveis da distribuição equitativa dos bens e da retribuição necessária, prevista no ordenamento jurídico. Cada um deve ter o seu ius, que pode significar, também, uma sanção, consoante o princípio da proporcionalidade. Ocorre que, no final, a lei e sua aplicação é que deverão ser a expressão concreta da justiça. Mas se a lei não for fruto da liberdade, ela não poderá ter o significado do justo pretendido.
Assim, a justiça não depende apenas da igualdade, mas ainda da liberdade expressa na lei. Ora, de que liberdade estamos falando? A dos modernos, defendida por Benjamin Constant, como uma característica do liberalismo e dos novos tempos? A liberdade, portanto, dos círculos de vida, protegidos pela Declaração de Direitos, dada a sua inalienabilidade presumida por ocasião do contrato social? Essa liberdade que exercemos pelo nosso arbítrio pessoal em âmbito particular onde o governo não pode intervir? Meu lar é o meu castelo, contra ele ninguém pode, nem mesmo o rei. Essa liberdade, no entanto, apesar da retórica das declarações de direitos, está sujeita a violações comuns nos Estados policialescos, como o brasileiro, embora por intermédios de ações justificáveis de ordem pública. Isso para não falar das tiranias ou das suspensões temporárias das garantias, no Estado de exceção e nas ditaduras. Ou estamos tratando de uma outra liberdade? A dos antigos? A de decidir e governar. A de fazer a lei e não, simplesmente, vê-la promulgada pela vontade e decisão dos governantes ou, se preferirem, dos representantes. 
Caímos mais uma vez na relação entre a justiça, agora no viés da questão da liberdade, e o sistema político. É evidente que não podemos conceber em nossa mente, já tomada pela ideia do constitucionalismo contemporâneo, a justiça sem que haja a liberdade de pensamento e sua expressão livre, a liberdade de consciência, de crença, de religião, de imprensa; sem que haja direitos públicos subjetivos oponíveis contra o Estado, como o direito de ação e de petição, de reclamação, de votar e ser votado; sem que haja proclamação de direitos individuais e sociais, acompanhada das garantias de sua efetiva realização. No entanto, não se deve descartar no Estado de Justiça a outra liberdade, a dos antigos, que os liberais desprezaram. A lei como elemento necessário imprescindível da justiça há de ser expressão da liberdade do povo, vale dizer de uma democracia participativa. Uma lei do povo, decidida pelo povo, a quem cabe dar a última palavra sobre o direito. Essa é a maneira de afastar de vez a ideologia do fenômeno jurídico e de buscar um conceito universal de Direito. Já não se poderá falar na lei como mera expressão de um poder nas mãos de uma classe, como pretendem os marxistas na sua critica ao capitalismo e ao regime da representação liberal. A justiça somente será possível em uma estrutura política e jurídica que assegure a liberdade dos modernos e se aproxime da liberdade dos antigos, a do povo participar das decisões do governo.
Nesse sentido, explica-se a concepção realista de liberdade dos romanos: a faculdade de fazer tudo aquilo que nos agrada, salvo se a força ou o Direito o impedir. Vale dizer que se a força inviabilizar a liberdade, não haverá justiça se essa força for exercida fora dos parâmetros jurídicos e, também, se o direito não nascer diretamente da vontade do povo, que sobre o direito dará a última palavra, não haverá liberdade e, por conseqüência, inexistirá a justiça.
Voltamos, em parte, à Revolução francesa. A justiça deve fundar-se na igualdade e na liberdade. Mas, cuidado! Nem uma nem outra pode ser pensada sem a fraternidade e essa não admite o terror, nem a impunidade, nem a propriedade absoluta, nem a tirania das maiorias, nem o elemento aristocrático da representação política.

A FRATERNIDADE
Assinalamos, assim, a necessidade de um ordenamento jurídico compatível com a democracia social (não confundir com a social democracia de teor marxista); a existência de uma igualdade (a absoluta e a relativa) como fundamento do justo; e a garantia da liberdade, tanto no sentido dos direitos individuais e sociais protegidos pelo constitucionalismo moderno, como na acepção da liberdade dos antigos, a da participação nas decisões do governo, de maneira que a lei, em face da qual todos são iguais, por todos tenha sido elaborada.
Essas referências à justiça e suas concepções, mais a voluntas romana de dar a cada um o seu direito, são, no entanto, insuficientes, porque esbarram, primeiro, na natureza do homem, e, segundo, nas circunstâncias e consequências da própria aplicação das medidas concebidas como justas.
A natureza do ser humano, plena de ambiguidades, impede a assertiva de que o homem é um ser justo. Vale o que disse um revolucionário francês, conduzido à guilhotina: cada um de nós precisa conformar-se com duas realidades, a da velhice e a da injustiça dos homens. Essa triste característica humana não encontra refutação no fórum, o hospital do direito. O máximo que se consegue nos tribunais é a justiça identificada com a lei, que na visão positivista é medida concreta daquela, certo que o contrário, o julgamento contra a lei, consubstanciaria, sempre, uma injustiça. As Cortes não fazem justiça, aplicam a lei. E não há outra saída, salvo um certo e relativo esforço hermenêutico, com as suas limitações.
Aqueles atributos e condições da justiça, além dos impulsos injustos do homem, todas aquelas ideias vinculadas ao conceito de justiça (igualdade, liberdade, direitos humanos, princípio da pessoa, como fonte-valor de todos os valores) não resolvem a questão das exigências da justiça social na distribuição equitativa dos bens e da riqueza, nem a das condições da justiça formal no tocante à reparação dos danos e à retribuição tanto para a benemerência como para a hipótese do cometimento de ilícitos.
Por mais que se estabeleçam parâmetros e proporções, sempre a ideia de justiça esbarrará no resultados das medidas de sua aplicação. Temos, ainda, a questão do tempo, senhor da razão, com as prescrições e decadências, as extinções da punibilidade e assim por diante.
Ainda que concretamente bem aplicadas as providências pré-ordenadas, abstratamente previstas no ordenamento, como sanção ou como benefício, podem levar a sofrimentos ou a vantagens, que, por pior ou melhor que seja o agente (incluindo-se aqui o governante, o agente público e o dono do poder), podem ser incompatíveis com os nossos sentimentos. O vagabundo que não produziu os bens que lhe são distribuídos; o corrupto vitorioso usufruindo da riqueza imoral porém lícita; o criminoso, apesar de hediondo ou bárbaro, que o mal conduziu além de sua consciência, sofrendo as torturas de cárcere desumano; a minoria vencida na decisão legislativa; os privilégios inevitáveis da política mesmo social e democrática; as vantagens do capital diante do trabalho; todas as considerações que levam ao falso argumento de que a estrutura produz o homem, quando o contrário explica melhor as aberrações da história, tudo isso acarreta um pessimismo na conclusão da impossibilidade da justiça plena e absoluta. Ela somente pode ser uma busca incessante e, ainda assim, não prescinde de um fundamento derradeiro que complementa todos os outros: a fraternidade. Essa expressão da caridade não é atributo do homem comum, mas dos santos. Neles ela se expressa como uma imitação da misericórdia divina. Veja-se a parábola do filho pródigo: nada para o filho que ficou e festa para aquele estróina que se perdeu na vida, praticou todos os excessos e voltou em andrajos para o pai. Na parábola não há qualquer referência à justiça, sim à misericórdia. Enfim, a única justiça possível é a de Deus. A nossa justiça racional não O alcança. De qualquer maneira, um povo ao elaborar o seu ordenamento jurídico somente será justo se piedoso. No fundo, somente haverá justiça se ela estiver no coração do homem.
A JURISDIÇÃO
Uma reflexão sobre a justiça não pode deixar de considerar uma parte fundamental do direito e do seu ordenamento que é a prestação jurisdicional por parte da organização política que, nos últimos cinco séculos, chamamos de Estado (nacional, territorial, soberano). Poderíamos, em vez dele, lembrar a antiguidade romana e o seu conceito de povo, mas este não pode ser considerado uma “sociedade”, um ente criado hipoteticamente pela vontade dos homens para a realização de determinados fins.
Se o Estado não oferecer aos cidadãos uma mecanismo capaz de atender as demandas resultantes dos conflitos de interesses, ele será uma expressão de sua própria contradição e ambigüidade e, em consequência, não haverá justiça!
Os conflitos não resolvidos, as lides caracterizadas, na expressão de Carnelutti, por um conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida, são inevitáveis em qualquer convivência humana e precisam ser resolvidas pelo direito, o qual consiste na sua pré-ordenação. Esse corolário jurídico oferece os elementos para a segurança. Impõe-se, por isso, o Estado-juiz.
Para realizar esse fim, o do cumprimento de sua obrigação jurisdicional, o Estado precisa instrumentalizar-se pela construção de um aparelho judicial, a que chamamos, desde o triunfo do liberalismo (sobretudo o francês) de Poder Judiciário, incumbido de administrar a justiça (iurisdictio) e de julgar (iudicatio) , ou, em outras palavras, da jurisdição e da judicatura, no caso reunidas em um só corpo ou órgão, assumido por quem o ocupa, que é o juiz.
Diante disso, inúmeros problemas organizacionais e pessoais são colocados de maneira a serem solucionados para possibilitar, efetivamente, ao Estado cumprir com a sua, talvez, principal atribuição. Para tanto, além de meios materiais e de efetiva apoio político e institucional, há a necessidade de juízes em número razoável em face da demanda crescente que deságua nos processos. Além do número, os juízes precisam estar dotados de razoável nível técnico, moral, intelectual, cultural, que os habilitem a enfrentar a árdua missão da judicatura.
Número plural de vezes, temos repetido que o fórum é o hospital do direito, onde este, adoentado, pode sobreviver ou não; e, também, que o direito exercer a sua função, em escala muito mais expressiva, fora dos tribunais e das varas judiciais. O que é levado para os juízes consiste em uma pequenina porção, a ponta de um iceberg, debaixo da qual estão fantásticos movimentos geológicos imersos no mundo social, que o direito disciplina sem que haja a necessidade do juiz. Não obstante a atividade jurisdicional é imprescindível tanto para a existência do próprio Estado, como para a sobrevivência do direito.
Sem a lei, a atividade jurisdicional pode transformar-se em puro arbítrio. Havendo, todavia, as ordens legais, os comandos sobre as condutas, o juiz preso a eles vai dirimir os casos concretos.
Tem havido muitos equívocos a respeito desse problema, o da relação lei-juiz. Há quem sustente, com base não sei em que texto, que o juiz era a boca da lei, mas agora, ele, ao julgar vai buscar na sociedade os elementos para declarar o direito. Parece claro que o juiz não é a boca da lei (a Revolução Francesa não mexeu nos juízes do antigo regime e temia, por isso, que eles, a pretexto de interpretação, traíssem a vontade do povo expressa nos comandos legais), mas não está livre da lei. Este receio revolucionário deu na jurisdição administrativa (o contencioso) e na visível inibição da interpretação pelo Código Napoleão. Medidas contra o Judiciário.
A democracia social estabelece rígidos pressupostos para o exercício da jurisdição e para a realização da justiça. Um deles é o da igualdade das partes, o princípio dispositivo (a ação e o processo são iniciativa das partes), a inexistência de poderes investigatórios. Juiz não é parte, nem autor, nem réu, não favorece a ninguém, por mais nobres que sejam os seus sentimentos. Não pode dizer: - “julgo a favor dos ricos, porque pagam impostos e são economicamente relevantes”; ou: - “julgo a favor dos pobres, porque vivem oprimidos pelo mundo”. É vedado ao juiz preocupar-se com a defesa de uma pessoa jurídica de direito público e suprir as deficiências de sua representação, tipo: -“a União foi mal defendida, anulo o processo”.
O juiz não é um robô, mas não está livre das leis. Não é legibus (ab) solutos. O juiz, aliás, somente detém poder se cumprir os comandos legais. Pode é interpretá-los pelos critérios jurídicos. Não pode pensar de novo aquilo que já foi pensado por outrem, mas pode levar até as últimas consequências, as do direito, o que foi elaborado pelo legislador. Tenho em mente, mais ou menos, a chamada “jurisprudência dos interesses”, formulada por Philippe Heck: a pluralidade de fontes e o interesse protegido pela lei, visto no momento da aplicação da norma e não da época da edição dela. O juiz, como uma espécie de legislador “ad hoc”. Não mais que isso.
A jurisdição tem por fim a atuação concreta da lei. Não é função do Judiciário declarar o direito em tese. Deve compor os conflitos, conforme a vontade da lei, que não depende do juiz, mas que aparece no momento da existência do fato regulado pela lei. O juiz declara e torna efetiva a vontade concreta da lei, que é anterior à sentença. A norma somente pode estar antes e não depois da decisão. O juiz julga segundo as leis, não a sua bondade. E em nosso sistema, deve julgar conforme as leis e não pelos exemplos jurisprudenciais.
Se assim for, se a estrutura política efetivar uma democracia social, aplicados os princípio da igualdade, da liberdade antiga e moderna, da fraternidade e da piedade, estaremos mais próximos de realizar a vontade constante e perpétua de dar a cada um e a todos o seu direito. A lei poderá ser efetivamente considerada a medida da justiça. O ordenamento jurídico não será, tão somente, a disciplina da liberdade, mas a condição da realização do homem como ser individual e de toda a comunidade onde ele estiver situado.

Professor de Teoria Geral e Filosofia do Direito da UnB

terça-feira, 6 de março de 2012

MARILENA CHAUÍ: AMOR À SABEDORIA E SOLIDARIEDADE COM A VIDA


José Geraldo de Sousa Junior
Na biografia que fez de Hannah Arendt, a sua discípula Elizabeth Young-Bruehl alude à atitude de amor ao mundo que caracterizava a grande pensadora, incapaz de ser contida na invisibilidade do pensamento e na intemporalidade da história. Uma interlocução em torno de Marilena Chauí evoca imperceptivelmente sentimento equivalente. A poderosa energia de sua trajetória filosófica, como amor ao conhecimento que, se bem modelo sofisticado e elegante de pensar o mundo, não se deixa jamais alienar das expectativas do real, mantendo-se sempre solidária ao sentido da existência humana projetada na vida.
Como Arendt, Marilena Chauí parece também conduzir-se ao impulso de uma “vocação para a amizade”, o que em parte explica a pronta acolhida de tão importantes personalidades para uma interlocução em torno do seu pensamento. Mas, se em Arendt o que a movia era a “linguagem da amizade”, na prazeirosidade de boa companhia, a amizade em Marilena Chauí tem ainda a dimensão do compartilhamento, isto é, disposição fraterna e agregadora, apta à comunhão e ao entrosamento de esforços, que se escoram reciprocamente a partir de uma causa comum.
Por isso, o potencial mobilizador de seu pensamento é capaz, simultaneamente, de orientar a reflexão crítica empreendida em trabalhos de companheiros associados, formando vivo entreposto de trocas intelectuais, enquanto deixa livre a inteligência dos que se associam em engajamento da razão, para reconhecer a legítima influência de quem acumulou mais conhecimento e experiência.
Uma interlocução com Marilena Chauí é, portanto, um compartilhar fraterno em torno de uma causa comum, tendo como denominador a pujança de seu pensamento filosófico e de seu engajamento político que tornam possível o colóquio com as aproximações históricas, sociológicas, políticas e jurídicas dos que acudiram a essa interlocução.
Penso que ela própria acolherá esses pressupostos de interlocução, se se recordar da referência que fez – num debate de 1982, com Roberto Lyra Filho a propósito de seu livro “O Que é Direito” – à virtude da amizade, citando La Boétie: “A amizade é um momento sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar pela mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a injustiça; e, entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, mas se entretemem; não são amigos, mas cúmplices”.
A referência é duplamente relevante. Primeiro, no sentido de reafirmar o pressuposto intencional de participação num colóquio de interlocução em torno do pensamento de Marilena Chauí: a amizade, em sentido filosófico, de amor ao conhecimento; e em sentido político, de solidariedade com a vida. Depois, como razão de presença nessa interlocução: a homenagem ao pensamento de escola, influente na crítica e na reconstrução do pensamento jurídico fundante de um agir político para legítima transformação do mundo.
De fato, no final dos anos 1960, a crise de paradigmas de conhecimento e de ação humanas projetadas no mundo abriu, no campo jurídico, o mesmo debate crítico que se travava nos demais âmbitos sociais e teóricos. Sob o enfoque da crítica, portanto, e ao impulso de uma conjuntura política complexa em sua adversidade, notadamente no contexto social da realidade latino-americana, o pensamento jurídico ocidental buscou reorientar-se paradigmaticamente, rejeitando a matriz positivista da redução da complexidade ao formalismo legalista e de descolamento dos pressupostos éticos que fundam uma normatividade legítima.
Um pouco por toda parte, no Brasil também organizaram-se núcleos críticos de pensar jurídico, com vocação política e teórica, reorientando o sentido de sua reflexão. Com denominações comuns – critical legal studies, critique Du droit, uso alternativo delderecho, direito insurgente – esses movimentos convocavam em manifestos a sua reinserção do direito na política, impulsionados por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista a uma atitude militante, sob a perspectiva ora de um “jusnaturalismo de combate”, ora de um “positivismo ético”.
A partir de seus estudos desenvolvidos desde os anos 1960 na Universidade de Brasília, em perspectiva dialética, o jurista Roberto Lyra Filho organizou a seu turno uma sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurídico, inicialmente inscrita num manifesto, lido na UnB em 1980, no qual formulou os fundamentos de uma concepção de Direito (1982), livre dos condicionamentos ideologizantes dos modelos antitéticos do juspositivismoempiricista e do jusnaturalismo metafísico, entendido este, assim, não como a norma em que se exteriorize, senão como “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Não se trata aqui de fazer a recuperação histórica desse processo, de estabelecer o balanço de seus achados ou a cartografia dos temas que suscitou, senão, para efeito da interlocução com Marilena Chauí, designar pontos de inflexão que, com sua influência, lhe atribuíram configuração e sentido epistemológico relevantes.
Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:
“Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se” (Chauí, 1986).
A alta densidade do pequeno estudo de Marilena Chauí contido nesse texto influenciou decisivamente o pensamento jurídico crítico brasileiro, constitutivo do que já foi denominado “Nova Escola Jurídica Brasileira”, sendo significativo recolher, para efeito desta interlocução, um aspecto por ela levantado para a compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, “a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico.
Com efeito, a partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.
Ana Amélia da Silva, em sua tese de doutoramento (1996), referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática do direito, tanto em termos teóricos quanto de criação de novas institucionalidades”.
É disso que trata Eder Sader (1988), apontando para a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais e aludindo à capacidade de constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que eles passaram a desenvolver.
O fato é que a irrupção dos movimentos operário e populares, sobretudo a partir dos anos 70, rompendo em ação coletiva o isolamento determinado por uma ordem autoritária que restringia a mobilização das organizações sociais, fez emergir uma nova sociabilidade, com a marca da autonomia que passou a caracterizar a ação dos sujeitos sociais assim constituídos.
Vera da Silva Telles (1988) referiu-se a esta emergência dizendo: “hoje, descobrem-se os trabalhadores como sujeitos autônomos, dotados de impulso próprio de movimentação, sujeitos de práticas cujo sentido político e dinamismo não são derivados dos espaços cedidos pelo Estado e cujas reivindicações não são reflexo automático e necessário das condições objetivas, mas passam por formas de solidariedade e de sociabilidades coladas na vida cotidiana”.
Caracterizados a partir de suas ações sociais, estes novos movimentos sociais, vistos como indicadores da emergência de novas identidades coletivas, isto é, coletividades políticas, sujeitos coletivos, puderam elaborar um quadro de significações culturais de suas próprias experiências, ou seja, do modo como vivenciam suas relações, identificam interesses, elaboram suas identidades e afirmam direitos.
A análise sociológica ressalta que a emergência do sujeito coletivo pode operar um processo pelo qual a carência social contida na reivindicação dos movimentos, é por eles percebida como negação de um direito, o que provoca uma luta para conquistá-lo. De acordo com Eder Sader, “a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas produzidas esteve na busca de uma valorização de dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas” (Sader, 1988).
A questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais, em configuração determinada pelos processos sociais e os direitos novos que elas enunciam.
É, novamente, Marilena Chauí quem vai oferecer a fundamentação filosófica que permite sustentar o sentido projetivo dessa nova identidade social para indicar o seu potencial protagonismo de sujeito instituinte de direitos.
Em prefácio ao livro de Eder Sader, ela propõe a seguinte questão: “Por que sujeito novo? Antes de mais nada – ela própria responde – porque criado pelos próprios movimentos sociais do período: sua prática os põe como sujeitos sem que teorias prévias os houvessem constituído ou designado. Em segundo lugar, porque se trata de um sujeito coletivo e descentralizado, portando, despojado das duas marcas que caracterizam o advento da concepção burguesa da subjetividade: a individualidade solipsista ou monádica como centro de onde partem as ações livres e responsáveis e o sujeito como consciência individual soberana de onde irradiam idéias e representações, postas como objeto, domináveis pelo intelecto. O novo sujeito é social; são os movimentos populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados, passam a definir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas. Em terceiro lugar, porque é um sujeito que, embora coletivo, não se apresenta como portador da universalidade definida a partir de uma organização determinada que operaria como centro, vetor e telos das ações sociopolíticas e para qual não haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens da máquina organizadora. Referido à Igreja, ao sindicato e às esquerdas, o novo sujeito neles não encontra o velho centro, pois já não são centros organizadores no sentido clássico e sim ‘instituições em crise’ que experimentam a ‘crise sob a forma de um deslocamento com seus públicos respectivos’, precisando encontrar vias para reatar relações com eles”.
Formulada nesses termos a questão, tornou-se possível para o pensamento jurídico crítico abrir novas perspectivas paradigmáticas, de relevante alcance político, quando se consideram os problemas de legitimação em sede de teoria da justiça, para poder pensar-se em um novo sujeito coletivo que se emancipe enquanto sujeito coletivo de direito, num novo modo de produção do social, do político e do jurídico.
É que, no paradigma da modernidade, o direito constituiu-se à base de uma noção fundamental – a noção de sujeito de direito –, a partir da qual a pessoa humana que lhe serve de referência antropológica se individualiza e polariza a estrutura abstrata da relação jurídica.
Na tradição filosófica, o sujeito aí radicado reflete, na sua impregnação iluminista, uma visão de mundo dominada pela racionalidade e a autotransparência do “pensar em si mesmo” que deseja “ser sujeito”, segundo Kant. Nesta sua origem histórico-filosófica, o conceito coincide com a noção aristotélica de substância ou, como em Descartes, com quem começa a tradição moderna do sujeito como “início” em si mesmo do indivíduo – o legislador de si próprio no sentido kantiano.
As referências trazidas por Marilena Chauí e então apropriadas para o debate do pensamento jurídico crítico vão permitir as condições de intersubjetividade não substancial, mas relacional, do fazer-se sujeito, no processo mesmo no qual este se revela e se realiza.
Franz J. Hinkelammert (2000), desde uma perspectiva de libertação, sugere que o sujeito não é um a priori do processo, senão que resulta como seu a posteriori. Supõe, portanto, uma intencionalidade solidária no agir protagonista dos novos sujeitos, em alargamento das possibilidades institucionais e da criação de espaços de vivência da “sujeiticidade humana”.
Penso que em outro viés, mas com resultado idêntico, Patrick Phato (1985) propõe um “civismo ordinário” para se referir às formas de sociabilidade constituídas em relações de reciprocidade de um cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.
No estudo de Ana Amélia da Silva, que toma como base as estratégias sociais para a institucionalização do “direito à moradia”, ela refere à formação de “agendas sociais” e de “espaços públicos” para aí inserir o que denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção”.
Trata-se de ampliar “os sentidos da democracia”, de modo a permitir, como lembra Maria Célia Paoli (1999), “recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos de construção democrática”.
A noção de democracia como invenção, que Marilena Chauí toma em Claude Lefort para redesignar a cidadania, compreendida como cidadania ativa, é outra importante contribuição que permitiu amplificar o seu diálogo com o pensamento jurídico crítico.
Por ocasião de sua participação na XIIIª Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, realizada em Belo Horizonte, em 1990, propõe: “a cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados e cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política”.
Antecipando o tema da questão democrática, que retomaria depois no último capítulo de seu Convite à Filosofia (1994), ela o associa ao processo de “criação de direitos” e, discorrendo sobre a “liberdade como autonomia”, designa os “sujeitos capazes de dar a si mesmos a lei”, sujeitos, portanto auto-nomos (auto, isto é, a si próprios; nomos, a norma, a lei), referindo-se à “possibilidade de que, no interior da sociedade civil, para além do privado e dos interesses, se constitui uma região instaurada pelos direitos, âmbito da cidadania”. E, conclui: “cidadania – a capacidade de colocar no social um sujeito novo que cria direitos e participa da direção da sociedade e do Estado”.
Até aqui elaborei um esboço de algumas referências destacadas que demarcam o estatuto da interlocução do pensamento jurídico crítico com a potente reflexão de Marilena Chauí. Uma interlocução que abre perspectivas, para recuperar, no dizer do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, o “impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar o direito, no caso deste autor, o direito constitucional, “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”. Por isso, para Canotilho, há que “incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas”, a partir de um “olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É assim que Roberto Lyra Filho passa a entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme ele indica, “o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos, e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito)”.
A rua aí, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmo o direito). Por isso mesmo, Marshall Berman fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicada para a vida humana, “transforma a multidão de solidários urbanos em povo”.
Mas a rua é concomitantemente, lugar simbólico, a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Assim em Roberto da Matta, que faz articulação dialética entre a “casa” e a “rua” para esclarecer comportamentos culturais. Assim também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos. Veja-se Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os verbos: “A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor!, pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu.../”. Do segundo, não menos expressivos estes versos: “... Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de / Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento ...
“O Direito Achado na Rua”, expressão criada por Roberto Lyra Filho, título que designa atualmente uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília, quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e, assim, como modelo atualizado de investigação: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.
Iniciei este texto numa alusão à amizade, citando, por lhe saber dileta, uma passagem de La Boétie. E findo com outra citação também referida à amizade, que é igualmente cara à Marilena Chauí, tanto mais que em palavras de Espinosa: “Somente os homens livres são gratos uns aos outros e procuram unir-se pelos laços da mais estreita amizade... Somente os homens livres agem de boa-fé e jamais com perfídia”.
Num colóquio a que acudimos livremente, somos agraciados por uma interlocução com o poderoso pensamento de Marilena Chauí que nos ilumina a todos, e aos de boa-fé engrandece.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1896.
CHAUÍ, Marilena. “Prefácio”. In: SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
_____. “Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e ProcessoEstudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986.
_____. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
Hinkelammert, Franz J. La Vuelta Del Sujeto Humano Reprimido Frente a La Estreategia de Globalización, Alemanha: Colloquium 2000, Faith Communitie sand Socia Movements Facing Globalisation, Hogeismar.
LIRA Filho, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos), 1982.
_____. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1980.
MATTA, Roberto da. A casa e a rua. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PAOLI, Maria Célia. “Apresentação e Introdução”. In: OLIVEIRA, F. & PAOLI, M. C. (orgs). Os Sentidos da Democracia. Políticas do dissenso e hegemonia globoal, Editora Petrópolis: Vozes, 1999.
PHARO, Patrick. Le Civisme Ordinaire, Paris: Librariedes Méridiens. Réponses Sociologiques, 1985.
SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram em Cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SILVA, Ana Amélia. Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLHCH/USP, 1996.
TELLES, Vera da Silva. “Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos”. In: KOWARICK, Lúcio (org). As Lutas Sociais e a Cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 247-286.
Artigo publicado no livro Diálogos com Marilena Chauí, Maria Célia Paoli, organizadora. – São Paulo: Editora Barcarolla: Discurso Editorial, 2011, págs. 15-28.