segunda-feira, 5 de novembro de 2012

DOGMÁTICA JURÍDICA: resgate


DOGMÁTICA JURÍDICA: resgate[1]

 Keila Andreane Corrêa da Silva[2]

Os tempos em que vivemos hoje não mais correspondem às explicações até recentemente aceitas, sendo necessária a reformulação deste saber para uma possível compreensão dos fenômenos sociais.

Alexandre Bernardino Costa


INTRODUÇÃO

                Quando Luís Alberto Warat, em seu texto “O outro lado da Dogmática Jurídica”, defende o resgate da mesma (a qual estaria sendo destruída pela Transmodernidade, termo que o autor utiliza no lugar de Pós-Modernidade) e acusa o contradogmatismo de não apenas não compreender o que a dogmática é, mas também de formular críticas vazias a esta (críticas as quais só se justificariam em um estado de horror e não em um estado de direito), percebe-se uma postura em defesa do modernismo que Lemert (1997) classificaria como modernismo radical.

            Não se deve, no entanto, entender a defesa da dogmática de Warat como simples reacionarismo visando à proteção de um determinado quadro de opressão de uma classe dominante sobre outra dominada; o autor enxerga a dogmática como resultado de uma ficção que possibilita a existência do estado de direito e que pode se renovar continuamente. Seguindo a linha de pensamento de Kelsen (1999), o Direito seria uma criação jurídica baseada em uma ficção que dá sentido ao Direito, e não o resultado da luta histórica dos povos, ideia defendida por autores como Lyra Filho (2006) e Agostinho Ramalho Neto (2001).

            Analisar-se-á a seguir a concepção de Warat acerca da Dogmática Jurídica, em que se baseia sua crítica ao contradogmatismo e as influências da Pós-Modernidade[4] sobre o pensamento do autor.


1 WARAT E O MODERNISMO RADICAL

Segundo Jair Ferreira dos Santos (1989), pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, artes e sociedades avançadas desde 1950, ano convencionalmente indicado como o fim do modernismo.

Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela Filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência [...], sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural (DOS SANTOS, 1989, P. 08).

Para Charles Lemert (1997), uma das posições impositivas à questão do pós-modernismo é o modernismo radical. Enquanto os pós-modernos criticam as ilusões da cultura moderna – a qual defende a ideia de a humanidade compartilhar ideais ocidentais em sua busca pela felicidade -, acusando-a de restringir a liberdade humana; os modernistas radicais consideram tal crítica à modernidade perigosa. A corrente (cuja mais importante tradição encontra-se na Escola de Frankfurt) reconhece a existência de fracassos sociais em determinadas condições históricas, sem, contudo, os entender como falhas inerentes à modernidade.

A Escola de Frankfurt, que surgiu em plena Alemanha nazista, repensava textos da tradição iluminista e de grandes teóricos do século XIX, objetivando a produção de uma filosofia social crítica aos autores clássicos e à sociedade moderna. Os filósofos, devido ao contexto social em que viveram, temiam que os ideais iluministas de uma humanidade universal fossem distorcidos por homens como Hitler, o que os levou a criticarem o totalitarismo. O modernismo radical se permitiria criticar a modernidade no sentido de descobrir o potencial liberador da cultura moderna. A corrente não abandona os ideais humanistas, ideais que precisariam ser protegidos (LEMERT, 1997).

(...) essa tradição de modernismo radical foi originalmente forjada nas terríveis fornalhas do Holocausto, de onde vem seu resoluto compromisso de proteger o espírito humano. Esse é também um dos motivos do apego dos modernistas radicais aos sublimes princípios humanistas da era moderna. A tarefa em que estão envolvidos é, na experiência deles, séria demais para sacrificarem princípios conhecidos da emancipação pelo capricho de um pós-modernismo petulante que se apresenta com demasiada frequência no espetáculo da cultura popular (LEMERT, 1997, p. 65).

É possível estabelecer uma ponte com Warat neste sentido. O autor trata a pós-modernidade (ou “transmodernidade”, uma forma passiva da modernidade) como a “trivialização de tudo o que na modernidade representou o sonho de uma humanidade melhor” (1994, p. 82). Sua valorização de pelo menos alguns aspectos da modernidade é evidente. Warat deseja o resgate da dogmática jurídica em seu “desejo por um mundo melhor” (1994, p. 83), que tem seu lado positivo atrelado à fantasia.

Em um estado de direito, é a lei jurídica que garante a proteção, a cidadania e a liberdade dos sujeitos. A lei jurídica, por sua vez, só é compreensível em seu funcionamento quando se apoia na dogmática jurídica, que atua na organização da lei e da garantia abstrata do vínculo social (WARAT, 1994).

Estou tratando de ver a dogmática jurídica como a representação mental de um ponto de referência racional para a produção dos sentidos da lei do direito, que vai permitir impor ao julgador o seu poder sem anular, na ação (o desejo) dos homens, o valor da lei como condição de seus vínculos. Uma forma de outorga de poder ao julgador, deixando a salvo a possibilidade de que a lei possa servir para organizar a experiência social dos indivíduos (WARAT, 1994, p. 87).

A dogmática jurídica, em sua função de ficção criada pelos juristas (e relegada por estes a fatores heterônomos, como a História ou a Razão) que legitima o poder e o funcionamento do direito, seria essencial para o bem da sociedade e a segurança dos direitos do cidadão. Ela seria importante demais para se permitir ser negada por teorias pós-modernas atreladas a interesses do capitalismo tardio, o qual busca a substituição da lei de direito pela lei de mercado. A crítica de Warat também recai sobre o contradogmatismo, como será tratado a seguir.


2  O CONTRADOGMATISMO VAZIO E DESLOCADO NO TEMPO

Autores como Lyra Filho (2006) e Agostinho Ramalho Neto (2001) fazem parte de uma corrente denominada Materialismo Histórico (método de investigação desenvolvido por Karl Marx); eles enxergam o Direito como uma construção histórica dos indivíduos em decorrência de suas lutas e conquistas, entendendo o dogmatismo do Direito como uma forma de controle social imposto pelas classes dominantes da sociedade.

Para Kelsen (1999), no entanto, o Direito só deve ser vinculado à ideologia quando se entende pela palavra aquilo que não é realidade determinada por lei causal ou uma descrição dessa realidade. As normas jurídicas seriam construídas por atos de vontade tendo, portanto, sentido arbitrário (KELSEN, 1986). Contudo, o Direito Positivo (dogmático) não deve ser vinculado a ideologias no sentido de juízos de valor subjetivos que obscurecem o objeto do conhecimento (KELSEN, 1999). A crítica dirigida ao Direito Positivo de ser instrumento das classes dominantes é contradita (em teoria) na própria definição do mesmo, no entanto isso não impediu que ele fosse utilizado para a dominação das classes econômicas mais baixas ao longo da História.

O contexto em que os autores materialistas citados adotaram a postura contradogmática foi o da ditadura militar brasileira, caracterizada por um estado de horror implementado pelo governo, o qual não mais garantia os direitos dos cidadãos. O contradogmatismo nesse período fazia sentido, afinal tratava-se da necessidade de combater um regime opressor e seus instrumentos (incluindo-se o próprio Direito). Contudo, a realidade mudou. Vive-se no Brasil um regime democrático e não mais um estado de horror. As leis cumprem agora sua função de proteger as pessoas daqueles que tentam violar seus direitos usando como justificativa uma suposta superação da modernidade e seus ideais defasados (como o estado de bem-estar social). Os contradogmáticos que lutaram contra a ditadura deveriam, neste momento, defender a dogmática jurídica e o estado de direito, contudo, devido principalmente a fatores políticos, o contradogmatismo persiste em uma época em que não é mais necessário e acaba por auxiliar aqueles que combatem as instituições do estado de direito buscando vantagens pessoais.

Tal ponto de vista, defendido por Warat, implica que o contradogmatismo, por não ser mais necessário na atualidade, tornou-se vazio e verdadeiramente dogmático (no sentido de que se recusa a mudar, diferente da dogmática jurídica que possibilitaria alterações e adaptações), sendo, portanto, um fator que contribui para a instabilidade e erosão trazidas pela pós-modernidade. O melhor a se fazer seria resgatar a dogmática jurídica em suas partes positivas e submetê-la a análises críticas para melhorá-la, e não investir na ultrapassada e inútil posição contradogmática. Não seria por algo apresentar falhas que mereceria ser totalmente desconsiderado. É necessário buscar o aprimoramento do que já foi conquistado; perseguir um modelo perfeito é ingênuo e irresponsável.


CONCLUSÃO

            Warat pode ser considerado um modernista radical. Ele acredita em um ideal nascido no modernismo e, mesmo admitindo-o como falho e sujeito a críticas, o autor rechaça a ideia de negá-lo. A dogmática jurídica seria esse ideal que necessita ser protegido a todo custo, pois, caso contrário, o Direito perderia sua justificativa e legitimação e a convivência entre as pessoas estaria seriamente comprometida. A dogmática é necessária para se evitar o caos e o caos é tratado como o resultado (ou o objetivo) da pós-modernidade. Não é à toa que Warat se refere aos pós-modernistas pejorativamente como “horda” durante sua incansável defesa da dogmática.

            Os contradogmáticos também são alvos de críticas, sendo retratados como pessoas que se recusam a aceitar que os tempos e as necessidades humanas mudaram, e que eles estariam perdendo tempo em um combate fútil contra o inimigo errado. A opressão não é causada pela dogmática, mas pela negação do estado do direito. Uma democracia é diferente de uma ditadura, portanto criticar a dogmática jurídica seria como criticar o próprio estado de direito, o que é inaceitável. O contradogmatismo, estando esvaziado de sentido, deve ser deixado de lado. A dogmática jurídica precisa ser resgatada, reavaliada e, acima de tudo, protegida, ou a própria segurança social se desmanchará no ar.


REFERÊNCIAS

ABREU, Pedro Manoel. Limites e possibilidades da constituição de uma ciência do direito na visão epistemológica de Luis Alberto Warat. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/warat_limites_ciencia_direito.pdf> Acesso em: 03/06/2012.

DEMAR, Gary. Definindo o Pós-Modernismo. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Disponível em: < http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf> Acesso em: 04/06/2012.

DOS SANTOS, Jair Ferreira. O que é Pós-Moderno. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

KELSEN, Hans. A norma. In: _______ Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 01-11.

________. Direito e Ciência. In: _____. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 79-119.

LEMERT, Charles. Pós-Modernismo não é o que você pensa. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1997.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 2006.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito – Conceito, Objeto, Método. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2001.

WARAT, Luís Alberto. O outro lado da dogmática jurídica. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.), Teoria do Direito e do Estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 81-95.



[1] Paper apresentado à disciplina Introdução à Ciência do Direito, ministrada pelo professor Luiz Otávio Pereira, a partir da leitura da bibliografia: WARAT, Luís Alberto. O outro lado da dogmática jurídica. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.), Teoria do Direito e do estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
[2] Discente regularmente matriculada no curso de Bacharelado em Direito/ Instituto de Ciências Jurídicas/ Universidade Federal do Pará, sob.
[3] Doutor em Direito pela Universidade de Buenos Aires e pós-Doutor pela Universidade de Brasília, onde também foi professor do mestrado e doutorado. Argentino, chegou ao Brasil em 1972, durante a ditadura militar. Considera-se que o pensamento de Warat passou por vários momentos (ABREU, Pedro Manoel. Limites e possibilidades da constituição de uma ciência do direito na visão epistemológica de Luis Alberto Warat. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/warat_limites_ciencia_direito.pdf> Acesso em: 03/06/2012.).
[4] Sistema de pensamento identificado com a anti-cosmovisão, negando a existência de qualquer verdade universal (DEMAR, Gary. Definindo o Pós-Modernismo. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Disponível em: < http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf> Acesso em: 04/06/2012).