quinta-feira, 17 de novembro de 2011

DITIRAMBOS JURÍDICOS EM LAVOURA ARCAICA

Gustavo Freitas
Nathalia Peixoto



1 INTRODUÇÃO: as folhas

A divisão deste trabalho foi feita a sugerir a imagem de uma árvore (Folhas, Tronco, Ramo torto e Raízes) a justificativa e o prolongamento de uma imagem transmitida no filme de a família ser como uma árvore. Assim a introdução será as folhas, por estarem no topo da árvore lembram o superficial, o Pai é o “Tronco” pelo fato de a história girar em torno da lei moral do Pai em conflito com o “direito da impaciência” de André, o filho pródigo, por isso mesmo, André assim como a Mãe, Ana e Lula são o “ramo torto” marcado por uma cicatriz e por fim nossas conclusões são apresentadas nas “raízes” lembrando a profundidade e o debate que queremos levantar.
Devido à complexidade do trabalho, aqui, concentraremos nossa análise sobre as personagens centrais que, sem dúvida, são o Pai e André. Representam, respectivamente, a ordem e o caos, direito e revolução, apolíneo e dionisíaco – Da obra O nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche.
O enredo do filme “Lavoura Arcaica” (Filme de Luiz Fernando Carvalho, baseado na obra “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar) conta a história da volta de um filho (André) para casa, onde houve uma relação incestuosa com uma das irmãs (Ana). Na primeira parte do filme, Pedro, o irmão mais velho, vai buscar André no quarto de pensão onde este se encontra após ter saído de casa. Após o regresso, na segunda parte, o pai toma conhecimento do incesto e sugestivamente, como grande parte das ações do filme, mata Ana.
Não é uma narrativa linear, assim na primeira parte do filme, André recolhe recordações misturadas no tempo e no espaço. A narrativa se faz em primeira pessoa, colocando-se o narrador no ponto de vista de André e realizando um caminho de volta que se dá tanto no sentido espacial (da pensão, longe da família, na direção da casa) como também no sentido temporal.
A narrativa acompanha esse percurso da memória, deixando-se entrecortar pela conversa entre Pedro e André e a confissão deste sobre a relação incestuosa com Ana. A narrativa aponta para um universo primitivo, marcado desde o início pelo seu nome – Lavoura Arcaica - ; remetendo a sua origem, sua história e estrutura social.

2 O TRONCO
O ambiente de Lavoura Arcaica é o de uma comunidade rural, afastada das grandes cidades, é nesse local onde a lógica dos grandes centros, suas instituições político-jurídicas permanecem completamente distantes do homem interiorano, é o espaço onde o direito positivo perde toda sua eficácia. Em seu lugar vemos emergir o direito consuetudinário, o direito confunde-se com a moral, predomina o direito da família, a lei proferida pelo Pai.
Personagem fundamental, no filme, o Pai e sugerido como o “Tronco” daquela família, a lógica daquela sociedade, os filhos devem apagar o próprio desejo em função da Lei e do desejo do Pai. É ele quem delimita para a criança o campo social, apresenta o mundo exterior e suas leis. Os filhos devem ser como ramos desse tronco, ser uma parte do corpo, devem aceitar sua versão da história transmitida nas parábolas na mesa das refeições.
As parábolas do Pai são fonte de direito, simbolizam o domínio do Pai sobre os filhos e sendo que longe dele não há possibilidade de sobrevivência, como na parábola do faminto:
Uma vez o faminto foi ao castelo do soberano dos soberanos para ser saciado. Na entrada, os guardas do castelo falam que bastava se apresentar ao soberano para ter tudo que desejava. Ao entrar, o faminto só encontra limites, passou de aposento em aposento, todos de paredes altas, mas despojadas de qualquer mobília. Finalmente, vê-se diante do soberano, que lhe oferece comidas e bebida invisíveis. O faminto as aceita e ambos comem e bebem dessa forma. Após bastante tempo nesse ritual o soberano fala que o faminto será saciado por demonstrar ter a virtude das virtudes a paciência.
Assim, próximo a ele ninguém se sentirá inseguro ou desamparado. O Pai é uma majestade rústica. No seu reino a razão, o equilíbrio, a moderação e a paciência são as virtudes do rei e por extensão devem ser as virtudes dos filhos/súditos.
Sobre a influência da tradição socrática, segundo a interpretação de Nietzsche, podemos entender que o Pai buscava a clareza e a verdade o que tornaria a vida exemplarmente vivida, virtuosa. Portanto, no qual seria dissolvido tudo aquilo que era disforme, obscurecido ou simbólico, tratava-se da busca pela simplicidade estilística, que é exatamente o contrário das palavras proferidas por André: de uma profundidade muitas vezes obscurecida, avessa a objetividade, no qual suas falas tomam o lugar do próprio sentimento, “André denuncia a impossibilidade de equilíbrio” (RISSIN, p.5). Para Sócrates temos um destino: que toda vontade humana tem um sentido racional, o bom é o racional, logo ninguém quereria o mal conscientemente sabendo que se trata do mal. A vida se consistiria na busca do bem comum que só se daria depurando o bom do mau, esta depuração consistiria na própria felicidade.
O pensamento do Pai constitui-se em pensamento lógico, racional de uma clareza ofuscante, capaz de esmagar ou subjugar os pensamentos dos filhos e da Mãe. Representa, o ápice de uma razão apolínea é levada à cena a exatidão da logicidade que apesar de frutífera mãe de paradoxos aborta tudo de potencial pluralidade. Estima-se a clareza.
A crítica de Nietzsche se volta mais especificamente ao método de apreensão da ciência, que baseado na falsa busca pela verdade indiscutível chega ao patamar de norma, resultando num estado social de rebanho, tornando a regra de vida o refúgio e a proteção e não a estratégia e a ação, isto é, mais claramente, o comodismo.
A finalidade é a busca de segurança e de tranqüilidade, sob o preço do apagamento de toda a diferença, a inda que à custa do esvaziamento da própria regra para que, sob a forma conceitual possa abarcar indistintamente uma pluralidade de casos, irredutível em singularidade em sua única fórmula. (MELO, 2004, p.10).
Ficamos diante também da manifestação do egoísmo socrático, porque é quase exclusivamente inclinada para os métodos científicos de apreensão da realidade, mesmo diante do alto grau de acientificidade. Tudo que é novo, que é vanguardista, que é poeticamente visionário é entendido como mau por fazer uso indevido do tradicional, fazendo cair no esquecimento a força criadora do espírito humano. Porque só sendo injusto e mentiroso para não obedecer a regra, concluindo assim que “a eliminação do incomensurável é igualmente escopo do esclarecimento” (MELO, 2004, p.11).

3 RAMO TORTO: André e a desordem, o apolíneo e o dionisíaco
A possibilidade de desenvolvimento da arte está relacionada à pulsão divina do apolíneo-dionisíaco, trata-se de uma batalha infinita com momentos periódicos de reconciliação. O apolíneo é arte do figurador plástico, trata-se do universo artístico do sonho no filme, podemos fazer uma analogia com a lembrança dos esconderijos de menino no bosque, na sua mais bela aparência onírica das artes plásticas. O deus délfico exige de seus seguidores a ponderação, a medida, o autoconhecimento aliados a beleza estética, no qual o excesso e a desmedida tratam-se de pontos exteriores a esfera de adoração apolínea.
Apolo então interpretaria o dilacerar do fígado de Prometeu pelo abrute como conseqüência de sua desmedida sabedoria. Porém, o Apolo da austeridade, o Apolo da resistência ao caráter titânico não conseguia dissimular o quanto de titânico, de bárbaro era recôndito em si. E a austeridade apolínea rompia as barragens do artificialmente represado comedimento transmutando-se na beberagem mágica do dionisíaco. Dionísio, o deus da arte não figurada (música) transforma a estridência da desmesura do grito de liberdade de André, “a impaciência também tem seus direitos”, “em prazer, dor e conhecimento” (NIETZSCHE, 2007, p.38), pois é a miséria que filosofa. “O desmedido revela-se como verdade, a contradição, o deleite, nascido das dores, falava por si, desde o coração da natureza” (NIETZSCHE, 2007, p. 38).
Assim o era a existência para os gregos pré-socráticos, no qual até o lamento do filho-esposo de Jocasta transfigurava-se em hino de louvor à vida, eis aqui o motivo da morte do herói, pois para o indivíduo sentir-se digno de glorificação precisava inserir-se num plano divino superior de vontade de existência, assim as imagens dos deuses habitantes do Olimpo era a própria veneração da imagem da civilização grega. Aqui não nos fala a moralidade cristã, o dever, sequer a misericórdia, “aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz é divinizado, não importando que seja bom ou mau” (NIETZSCHE, 2007, p.33). A nossa realidade tão lacunarmente, tão abissalmente obscurecida só pode tornar-se realmente digna de ser vivida através do caráter divinizatório das artes.
Há pessoas que, por falta de experiência, ou por embotamento de espírito, se desviam de semelhantes fenômenos como de “moléstias populares” e, apoiados no sentimento de sua própria saúde, fazem-se sarcásticas ou compassivas diante de tais fenômenos: essas pobres criaturas não têm, na verdade, idéia de quão cadavérica e espectral fica essa sua “sanidade”, quando diante deles passa bramando a vida cadente do entusiasta dionisíaco. (NIETZSCHE, 2007, p.27-28).

4 CONCLUSÃO: as raízes
A moralidade para Nietzsche se baseia na tradição, porém a tradição origina-se num primeiro longínquo momento na prática, uma ação que poderia ser considerada útil ou nociva, que com o passar dos anos passou a fazer parte da natureza, essa prática por afastar a sensação do medo e criar em nós a sensação da segurança eleva-se a autoridade de norma.
A moral resume-se, portanto na obediência, Para Nietzsche “o homem é a mais medrosa das criaturas e devemos compreender a moral a partir dessa sensação básica. O que suscita medo? A resposta é clara para o autor: o outro” (MELO, 2004, p.59), a uma norma, a obediência por medo da improvisação, por temer-se a liberdade. A segurança é vista indiscutivelmente, desde tempos imemoriais, como a divindade suprema. Nietzsche então passa a criticar o fato de que a moral perdeu, decorrido o longo tempo, o contexto com a sua experiência, motivo originário e passam a “valer não pelo que significaram enquanto valoração, mas sim por sua antiguidade, santidade e sua indiscutibilidade” (MELO, 2004, p.64). A moral não se fundaria assim no costume em si mas no sentimento do costume. Assim é que o sentimento do costume vai ditar a normalidade: satisfazendo a regra de que todas as nossas ações devem ser calculadas, justificadas (mesmo que seja no sentimento do costume). Eis que nos baseamos no irracionalismo: fundamentamo-nos em doutrinas muitas vezes consideramos falsas, prostrando-nos em obediência a uma autoridade superior que se alimenta da força que é fruto da nossa própria obediência, esfacelando o que deu origem a própria obediência, que foi a utilidade, impedindo que a experiência seja vista como experiência renovada, calando assim a boca do entusiasta dionisíaco visionário, cujo sacrifício é praticado a cada nova (velha) geração. Assim a moral cristã ou socrática, baseia-se na “crueldade para consigo, na submissão de si: entra no conceito de homem mais ético da comunidade a virtude do sofrimento freqüente, da privação, da vida dura, da mortificação cruel.” (MELO, 2004, p.62-63). E é nisso, segundo o nosso ensimesmado filósofo que se converte em embrutecimento da humanidade, porque nos tornamos acríticos, deixamos de lado os nossos “Por quês”!

REFERÊNCIAS:

LAVOURA ARCAICA. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Produção de Luiz Fernando Carvalho (s.1) Produzido por Videolar S/A Sob licença de Cannes Produções S/A, 2005, DVD, son.,color.
NIETZSCHE, Friedrich.O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004.
RISSIN, Ruth. O universo primitivo em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Disponível em: http://www.rio4.org.br/v2/artigos/o_universo_primitivo_de_lavoura_arcaica.pdf.

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