DOGMÁTICA JURÍDICA: resgate[1]
Os tempos em que vivemos hoje não mais correspondem
às explicações até recentemente aceitas, sendo necessária a reformulação deste
saber para uma possível compreensão dos fenômenos sociais.
Alexandre Bernardino Costa
INTRODUÇÃO
Quando Luís
Alberto Warat,
em seu texto “O outro lado da Dogmática Jurídica”, defende o resgate da mesma
(a qual estaria sendo destruída pela Transmodernidade, termo que o autor
utiliza no lugar de Pós-Modernidade) e acusa o contradogmatismo de não apenas
não compreender o que a dogmática é, mas também de formular críticas vazias a
esta (críticas as quais só se justificariam em um estado de horror e não em um
estado de direito), percebe-se uma postura em defesa do modernismo que Lemert
(1997) classificaria como modernismo radical.
Não se deve, no entanto, entender a
defesa da dogmática de Warat como simples reacionarismo visando à proteção de
um determinado quadro de opressão de uma classe dominante sobre outra dominada;
o autor enxerga a dogmática como resultado de uma ficção que possibilita a
existência do estado de direito e que pode se renovar continuamente. Seguindo a
linha de pensamento de Kelsen (1999), o Direito seria uma criação jurídica
baseada em uma ficção que dá sentido ao Direito, e não o resultado da luta
histórica dos povos, ideia defendida por autores como Lyra Filho (2006) e
Agostinho Ramalho Neto (2001).
Analisar-se-á a seguir a concepção
de Warat acerca da Dogmática Jurídica, em que se baseia sua crítica ao
contradogmatismo e as influências da Pós-Modernidade[4]
sobre o pensamento do autor.
1 WARAT E O
MODERNISMO RADICAL
Segundo Jair Ferreira dos Santos (1989),
pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, artes e
sociedades avançadas desde 1950, ano convencionalmente indicado como o fim do
modernismo.
Ele nasce com a
arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop nos anos 60.
Cresce ao entrar pela Filosofia, durante os anos 70, como crítica da cultura
ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no
cotidiano programado pela tecnociência [...], sem que ninguém saiba se é
decadência ou renascimento cultural (DOS SANTOS, 1989, P. 08).
Para Charles Lemert (1997), uma das
posições impositivas à questão do pós-modernismo é o modernismo radical.
Enquanto os pós-modernos criticam as ilusões da cultura moderna – a qual
defende a ideia de a humanidade compartilhar ideais ocidentais em sua busca
pela felicidade -, acusando-a de restringir a liberdade humana; os modernistas
radicais consideram tal crítica à modernidade perigosa. A corrente (cuja mais
importante tradição encontra-se na Escola de Frankfurt) reconhece a existência
de fracassos sociais em determinadas condições históricas, sem, contudo, os entender
como falhas inerentes à modernidade.
A Escola de Frankfurt, que surgiu em
plena Alemanha nazista, repensava textos da tradição iluminista e de grandes
teóricos do século XIX, objetivando a produção de uma filosofia social crítica
aos autores clássicos e à sociedade moderna. Os filósofos, devido ao contexto
social em que viveram, temiam que os ideais iluministas de uma humanidade
universal fossem distorcidos por homens como Hitler, o que os levou a
criticarem o totalitarismo. O modernismo radical se permitiria criticar a
modernidade no sentido de descobrir o potencial liberador da cultura moderna. A
corrente não abandona os ideais humanistas, ideais que precisariam ser
protegidos (LEMERT, 1997).
(...) essa
tradição de modernismo radical foi originalmente forjada nas terríveis
fornalhas do Holocausto, de onde vem seu resoluto compromisso de proteger o
espírito humano. Esse é também um dos motivos do apego dos modernistas radicais
aos sublimes princípios humanistas da era moderna. A tarefa em que estão envolvidos
é, na experiência deles, séria demais para sacrificarem princípios conhecidos
da emancipação pelo capricho de um pós-modernismo petulante que se apresenta
com demasiada frequência no espetáculo da cultura popular (LEMERT, 1997, p.
65).
É possível estabelecer uma ponte com
Warat neste sentido. O autor trata a pós-modernidade (ou “transmodernidade”,
uma forma passiva da modernidade) como a “trivialização de tudo o que na
modernidade representou o sonho de uma humanidade melhor” (1994, p. 82). Sua
valorização de pelo menos alguns aspectos da modernidade é evidente. Warat
deseja o resgate da dogmática jurídica em seu “desejo por um mundo melhor”
(1994, p. 83), que tem seu lado positivo atrelado à fantasia.
Em um estado de direito, é a lei
jurídica que garante a proteção, a cidadania e a liberdade dos sujeitos. A lei
jurídica, por sua vez, só é compreensível em seu funcionamento quando se apoia
na dogmática jurídica, que atua na organização da lei e da garantia abstrata do
vínculo social (WARAT, 1994).
Estou tratando
de ver a dogmática jurídica como a representação mental de um ponto de
referência racional para a produção dos sentidos da lei do direito, que vai
permitir impor ao julgador o seu poder sem anular, na ação (o desejo) dos
homens, o valor da lei como condição de seus vínculos. Uma forma de outorga de
poder ao julgador, deixando a salvo a possibilidade de que a lei possa servir
para organizar a experiência social dos indivíduos (WARAT, 1994, p. 87).
A dogmática jurídica, em sua função de
ficção criada pelos juristas (e relegada por estes a fatores heterônomos, como
a História ou a Razão) que legitima o poder e o funcionamento do direito, seria
essencial para o bem da sociedade e a segurança dos direitos do cidadão. Ela
seria importante demais para se permitir ser negada por teorias pós-modernas
atreladas a interesses do capitalismo tardio, o qual busca a substituição da
lei de direito pela lei de mercado. A crítica de Warat também recai sobre o
contradogmatismo, como será tratado a seguir.
2 O CONTRADOGMATISMO VAZIO E DESLOCADO NO TEMPO
Autores como Lyra Filho (2006) e
Agostinho Ramalho Neto (2001) fazem parte de uma corrente denominada
Materialismo Histórico (método de investigação desenvolvido por Karl Marx);
eles enxergam o Direito como uma construção histórica dos indivíduos em
decorrência de suas lutas e conquistas, entendendo o dogmatismo do Direito como
uma forma de controle social imposto pelas classes dominantes da sociedade.
Para Kelsen (1999), no entanto, o Direito
só deve ser vinculado à ideologia quando se entende pela palavra aquilo que não
é realidade determinada por lei causal ou uma descrição dessa realidade. As
normas jurídicas seriam construídas por atos de vontade tendo, portanto,
sentido arbitrário (KELSEN, 1986). Contudo, o Direito Positivo (dogmático) não
deve ser vinculado a ideologias no sentido de juízos de valor subjetivos que
obscurecem o objeto do conhecimento (KELSEN, 1999). A crítica dirigida ao
Direito Positivo de ser instrumento das classes dominantes é contradita (em
teoria) na própria definição do mesmo, no entanto isso não impediu que ele
fosse utilizado para a dominação das classes econômicas mais baixas ao longo da
História.
O contexto em que os autores materialistas
citados adotaram a postura contradogmática foi o da ditadura militar
brasileira, caracterizada por um estado de horror implementado pelo governo, o
qual não mais garantia os direitos dos cidadãos. O contradogmatismo nesse
período fazia sentido, afinal tratava-se da necessidade de combater um regime
opressor e seus instrumentos (incluindo-se o próprio Direito). Contudo, a
realidade mudou. Vive-se no Brasil um regime democrático e não mais um estado
de horror. As leis cumprem agora sua função de proteger as pessoas daqueles que
tentam violar seus direitos usando como justificativa uma suposta superação da
modernidade e seus ideais defasados (como o estado de bem-estar social). Os
contradogmáticos que lutaram contra a ditadura deveriam, neste momento,
defender a dogmática jurídica e o estado de direito, contudo, devido
principalmente a fatores políticos, o contradogmatismo persiste em uma época em
que não é mais necessário e acaba por auxiliar aqueles que combatem as
instituições do estado de direito buscando vantagens pessoais.
Tal ponto de vista, defendido por Warat,
implica que o contradogmatismo, por não ser mais necessário na atualidade,
tornou-se vazio e verdadeiramente dogmático (no sentido de que se recusa a
mudar, diferente da dogmática jurídica que possibilitaria alterações e
adaptações), sendo, portanto, um fator que contribui para a instabilidade e
erosão trazidas pela pós-modernidade. O melhor a se fazer seria resgatar a
dogmática jurídica em suas partes positivas e submetê-la a análises críticas
para melhorá-la, e não investir na ultrapassada e inútil posição
contradogmática. Não seria por algo apresentar falhas que mereceria ser
totalmente desconsiderado. É necessário buscar o aprimoramento do que já foi
conquistado; perseguir um modelo perfeito é ingênuo e irresponsável.
CONCLUSÃO
Warat pode ser considerado um
modernista radical. Ele acredita em um ideal nascido no modernismo e, mesmo
admitindo-o como falho e sujeito a críticas, o autor rechaça a ideia de
negá-lo. A dogmática jurídica seria esse ideal que necessita ser protegido a
todo custo, pois, caso contrário, o Direito perderia sua justificativa e
legitimação e a convivência entre as pessoas estaria seriamente comprometida. A
dogmática é necessária para se evitar o caos e o caos é tratado como o
resultado (ou o objetivo) da pós-modernidade. Não é à toa que Warat se refere
aos pós-modernistas pejorativamente como “horda” durante sua incansável defesa
da dogmática.
Os contradogmáticos também são alvos
de críticas, sendo retratados como pessoas que se recusam a aceitar que os
tempos e as necessidades humanas mudaram, e que eles estariam perdendo tempo em
um combate fútil contra o inimigo errado. A opressão não é causada pela
dogmática, mas pela negação do estado do direito. Uma democracia é diferente de
uma ditadura, portanto criticar a dogmática jurídica seria como criticar o
próprio estado de direito, o que é inaceitável. O contradogmatismo, estando
esvaziado de sentido, deve ser deixado de lado. A dogmática jurídica precisa
ser resgatada, reavaliada e, acima de tudo, protegida, ou a própria segurança
social se desmanchará no ar.
REFERÊNCIAS
ABREU,
Pedro Manoel. Limites e possibilidades
da constituição de uma ciência do direito na visão epistemológica de Luis
Alberto Warat. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/warat_limites_ciencia_direito.pdf> Acesso em:
03/06/2012.
DEMAR,
Gary. Definindo o Pós-Modernismo.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Disponível em: < http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf> Acesso em:
04/06/2012.
DOS
SANTOS, Jair Ferreira. O que é
Pós-Moderno. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
KELSEN,
Hans. A norma. In: _______ Teoria Geral
das Normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 01-11.
________.
Direito e Ciência. In: _____. Teoria
Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 79-119.
LEMERT,
Charles. Pós-Modernismo não é o que você
pensa. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1997.
LYRA
FILHO, Roberto. O que é Direito. São
Paulo: Brasiliense, 2006.
MARQUES
NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do
Direito – Conceito, Objeto, Método. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar,
2001.
WARAT, Luís Alberto. O outro lado
da dogmática jurídica. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.), Teoria do Direito e do Estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1994, p. 81-95.
[1] Paper apresentado à disciplina
Introdução à Ciência do Direito, ministrada pelo professor Luiz Otávio Pereira,
a partir da leitura da bibliografia: WARAT, Luís Alberto. O outro lado da
dogmática jurídica. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.), Teoria do Direito e do estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1994.
[2] Discente regularmente
matriculada no curso de Bacharelado em Direito/ Instituto de Ciências
Jurídicas/ Universidade Federal do Pará, sob.
[3] Doutor em
Direito pela Universidade de Buenos Aires e pós-Doutor pela Universidade de
Brasília, onde também foi professor do mestrado e doutorado. Argentino, chegou
ao Brasil em 1972, durante a ditadura militar. Considera-se que o pensamento de
Warat passou por vários momentos (ABREU, Pedro Manoel. Limites e possibilidades da constituição de uma ciência do direito na
visão epistemológica de Luis Alberto Warat. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/warat_limites_ciencia_direito.pdf> Acesso em:
03/06/2012.).
[4] Sistema de pensamento
identificado com a anti-cosmovisão, negando a existência de qualquer verdade
universal (DEMAR, Gary. Definindo o Pós-Modernismo.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. Disponível em: < http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf> Acesso em:
04/06/2012).