domingo, 18 de março de 2012

REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA

O Professor Ronaldo Poletti, professor de longa data de nossa Faculdade de Direito e recém-aposentado, publica o teor de sua última aula, ministrada em 14 de dezembro de 2011 e intitulada "Reflexões sobre a Justiça".

REFLEXÕES SOBRE A JUSTIÇA 

Sumário: 1. A democracia social. 2. Igualdade. 3. Liberdade. 4. Fraternidade. 5. Jurisdição.
A DEMOCRACIA SOCIAL
Os filósofos, mais do que os juristas, têm se dedicado ao tema da justiça, talvez porque justiça e direito sejam coisas diferentes, situadas em mundos que não se confundem. O direito integra o mundo da cultura por oposição ao da natureza, enquanto a justiça é um ser ideal, como um valor. O direito está impregnado de valores, mas com eles não se identifica. É que o homem constroi a ordem jurídica para si e ele é um ser que age na direção de fins eleitos (valores) pela sua vontade livre. A justiça está sempre situada no plano deontológico. Uma busca incessante, como a verdade para a filosofia. Os romanos, por isso, disseram que a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu, vale dizer o seu ius. Nada que ver com o direito subjetivo dos modernos, mas como algo que decorre da situação do homem em concreto.
Foram construídas e ainda o serão inúmeras teorias sobre a justiça. Nenhuma delas, que me lembre, exauriu-se nas especulações sobre a prestação jurisdicional. No fórum, a justiça está como um doente no hospital. Pode salvar-se, ou não.
Desde Aristóteles, insiste-se na idéia de identificar a justiça com a igualdade, seja absoluta, seja relativa. Ainda recentemente John Rawls adotou o critério racional e abstrato do contrato social, como Locke, Hobbes, Rousseau e tantos outros, para inserir nele o pressuposto da igualdade e, a partir daí, estabelecer todas as deduções possíveis. Não muito distante está o prêmio nobel Armartya Sem, em livro que está na praça.
Dentre outros aspectos, a idéia de justiça passa pela formulação de um projeto político ideológico, cuja estrutura possibilitaria a realização concreta da justiça ou, pelo menos, atenuaria o drama da desigualdade, nem sempre injusta, porém dramática na exacerbação das diferenças que, em muitos casos, levam à miséria material. Assim, os marxistas pensaram no socialismo científico, na ditadura do proletariado, substituindo a da burguesia, na direção do comunismo, o governo das coisas e dos homens por si sós e realização de uma harmonia perfeita entre os desiguais por natureza. Os fascistas pensaram alcançar a justiça pelo Estado presente em cada um dos homens e verdadeiro deus na sociedade. Os liberais, crentes nas leis do universo em que tudo caminha por si, idealizaram o Estado de Direito em que o governo é mera polícia, intervindo apenas quando necessário, enquanto a liberdade individual reinaria como princípio absoluto, até na economia. Não demorou o grito de Lacordaire: entre o forte e o fraco, o patrão e o operário, o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza e é o direito que liberta.
Neste jogo, de idas e vindas, entre a hegemonia da liberdade ou da igualdade, inquestionável o fracasso estatal de todos os matizes. A liberal democracia do mínimo de Estado, a suprema realização do espírito do hegelianismo da direita ou da esquerda e, também, a social democracia (expressão marxista) redundaram em mais injustiça.
Se a idéia da justiça não prescinde de uma construção jurídica e política, o nosso tempo dirige-se para o consenso da democracia social (não é um mero jogo de palavras), onde as conquistas sociais convivam com a liberdade. Preservados o direitos, afastado o panestatismo, extintas as regalias e os privilégios, implantada a igualdade de oportunidades e a meritocracia, garantida a distribuição razoável das riquezas, sem que haja esbulho ou violência, poderemos, talvez, alcançar um Estado de Justiça e, não apenas, um Estado de Direito, ainda que democrático. Não apenas o governo das leis e não dos homens, mas uma sociedade onde as leis sejam expressão da vontade do povo e, ainda, de uma razoável proporção. O povo valerá mais do que o governo das instituições.
É lógico que os conflitos de interesse deverão ser resolvidos da melhor maneira e somente aí entram os juízes.
Aos juristas, no entanto, incluindo os magistrados, caberá a revelação da tendência do povo e expressá-la em suas interpretações, de maneira a construir-se uma democracia social, preservando-se os grandes legados do Ocidente Cultural (e aqui penso no caso brasileiro): o logos grego, a proporção do direito romano, a liberdade dos liberais, a igualdade dos socialistas (sem Estado) e a ideia da pessoa humana, o valor fonte de todos os valores. A democracia social parece ser o desaguadouro comum dos nossos ideólogos, a projeção de uma estrutura social, política e econômica, como condição para a realização da justiça.
A IGUALDADE
Enquanto a concepção de direito natural busca fundar-se na ideia de justiça, a experiência tem demonstrado que direito e justiça são coisas diferentes. A justiça, no máximo, pode ser um ideal para o direito, uma espécie de sonho, jamais alcançado. O homem, criador do direito, não parece ser justo. Basta ver a História e o dia a dia dos jornais da contemporaneidade. De qualquer maneira, intentamos sempre a construção de um regime político e jurídico que proporcione a justiça, ainda que não de forma absoluta e completa.
O fundamento da justiça tem sido, em inúmeras de suas projeções, a igualdade. E logo vêm os obstáculos. Há uma igualdade absoluta: todos nascem iguais, e por isso estão perante a lei em uma única posição. A lei, aliás, deve tratar a todos igualmente. Mas há uma igualdade relativa, consistente em tratar de maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades.
A sabedoria popular ironiza: todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros. Profliga-se, assim, a injustiça visível de um ordenamento jurídico, teoricamente, o bem estritamente comum, que permite a sua utilização a favor dos ricos e dos poderosos em detrimento dos pobres e dos despojados de qualquer poder.
O próprio Direito Romano consagra que pelo ius naturale todos são iguais, mas vem o ius gentium e cria a guerra, o domínio, a escravidão, a propriedade, gerando, assim, a desigualdade.
Diante disso, cai, ou pode cair por terra, a concepção positivista de que a lei é a medida concreta da justiça, o que nem sempre se confirma empiricamente.
Mas temos outros problemas em relação à igualdade. O princípio socialista expresso por Proudhon oferece uma séria problemática para a sua aplicação. Diz ele: de cada um, segundo a sua capacidade; a cada um, segundo a sua necessidade. A Constituição Soviética precisou enfrentar este problema. Como aplicar tal princípio em uma sociedade pretensamente de iguais, no socialismo como etapa revolucionária para o desfecho final do comunismo? Como retribuir parte de uma riqueza a quem não colaborou para a sua produção? Anote-se que a pergunta se coloca conforme o argumento capitalista, no sentido de distribuir o “bolo” apenas a quem com ele contribuiu. A União Soviética não hesitou. A Constituição de 1936 foi clara no seu art. 12: “Na U.R.S.S., o trabalho é um dever e uma questão de honra para qualquer cidadão corporalmente capacitado, de acordo com o princípio: ‘Aquele que não trabalha, não deve comer’. O princípio aplicado na U.R.S.S. é o do socialismo: ‘De cada um, de acordo com suas habilidades; a cada um, de acordo com seu trabalho’”.
Curioso! Um dos problemas do capitalismo está em que nem todos os que consomem, produzem. A acumulação do capital parece ensejar um maior número de privilegiados que não trabalham, mas vivem nababescamente. Aplicado o princípio comunista soviético no Brasil, aumentaríamos, para satisfação do Estado assistencialista, o número de famintos e suas bolsas eleiçoeiras. O pior, talvez, o mais grave, e, na aparência, desumano, está em que os soviéticos foram buscar a correção do princípio socialista utópico no Evangelho. Paulo, na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, explicitou: “Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e com fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também”.
Lógico é que, nem os soviéticos, e muito menos São Paulo, estavam afastando os excluídos da fortuna, ou pela idade ou pela incapacidade física, mas deixando claro que a igualdade na distribuição dos bens implica, salvo as exceções humanas justificáveis, a participação em sua produção, sob pena de a igualdade gerar desigualdade e injustiça. Daí que, identificar de maneira simples a justiça com o princípio da igualdade pode levar ao seu contrário, à injustiça, mesmo que se adote e se aplique a ideia da igualdade de oportunidades e a meritocracia, o que, por si só, também é problemático.
Sob outro ângulo, não basta que a lei seja igual para todos; é preciso que a lei seja a expressão da liberdade e, mais, que os mecanismos de distribuição, reparação e retribuição tragam, como fundamento, a caridade ou, se preferirem, a fraternidade.
A LIBERDADE
Claro está que direito e justiça são coisas distintas, embora não seja possível construir o Estado de Justiça e não meramente de Direito, sem uma estrutura política e jurídica compatível com esse fim. Essa estrutura, esse regime, como dissemos, está expresso na democracia social, onde se projetam e se concretizam os valores de um desenvolvimento social, político e econômico, que venha a gerar uma igualdade possível, sem prejuízo dos direitos do liberalismo clássico, como um legado da Cultura Ocidental, do qual não devemos abrir mão.
Identificar a justiça com a igualdade, conforme também acentuamos, não resolve a questão, necessitando-se, pelo menos, de dois outros elementos. Um deles a caridade, base de uma ação fraternal a justificar os acertos imprescindíveis da distribuição equitativa dos bens e da retribuição necessária, prevista no ordenamento jurídico. Cada um deve ter o seu ius, que pode significar, também, uma sanção, consoante o princípio da proporcionalidade. Ocorre que, no final, a lei e sua aplicação é que deverão ser a expressão concreta da justiça. Mas se a lei não for fruto da liberdade, ela não poderá ter o significado do justo pretendido.
Assim, a justiça não depende apenas da igualdade, mas ainda da liberdade expressa na lei. Ora, de que liberdade estamos falando? A dos modernos, defendida por Benjamin Constant, como uma característica do liberalismo e dos novos tempos? A liberdade, portanto, dos círculos de vida, protegidos pela Declaração de Direitos, dada a sua inalienabilidade presumida por ocasião do contrato social? Essa liberdade que exercemos pelo nosso arbítrio pessoal em âmbito particular onde o governo não pode intervir? Meu lar é o meu castelo, contra ele ninguém pode, nem mesmo o rei. Essa liberdade, no entanto, apesar da retórica das declarações de direitos, está sujeita a violações comuns nos Estados policialescos, como o brasileiro, embora por intermédios de ações justificáveis de ordem pública. Isso para não falar das tiranias ou das suspensões temporárias das garantias, no Estado de exceção e nas ditaduras. Ou estamos tratando de uma outra liberdade? A dos antigos? A de decidir e governar. A de fazer a lei e não, simplesmente, vê-la promulgada pela vontade e decisão dos governantes ou, se preferirem, dos representantes. 
Caímos mais uma vez na relação entre a justiça, agora no viés da questão da liberdade, e o sistema político. É evidente que não podemos conceber em nossa mente, já tomada pela ideia do constitucionalismo contemporâneo, a justiça sem que haja a liberdade de pensamento e sua expressão livre, a liberdade de consciência, de crença, de religião, de imprensa; sem que haja direitos públicos subjetivos oponíveis contra o Estado, como o direito de ação e de petição, de reclamação, de votar e ser votado; sem que haja proclamação de direitos individuais e sociais, acompanhada das garantias de sua efetiva realização. No entanto, não se deve descartar no Estado de Justiça a outra liberdade, a dos antigos, que os liberais desprezaram. A lei como elemento necessário imprescindível da justiça há de ser expressão da liberdade do povo, vale dizer de uma democracia participativa. Uma lei do povo, decidida pelo povo, a quem cabe dar a última palavra sobre o direito. Essa é a maneira de afastar de vez a ideologia do fenômeno jurídico e de buscar um conceito universal de Direito. Já não se poderá falar na lei como mera expressão de um poder nas mãos de uma classe, como pretendem os marxistas na sua critica ao capitalismo e ao regime da representação liberal. A justiça somente será possível em uma estrutura política e jurídica que assegure a liberdade dos modernos e se aproxime da liberdade dos antigos, a do povo participar das decisões do governo.
Nesse sentido, explica-se a concepção realista de liberdade dos romanos: a faculdade de fazer tudo aquilo que nos agrada, salvo se a força ou o Direito o impedir. Vale dizer que se a força inviabilizar a liberdade, não haverá justiça se essa força for exercida fora dos parâmetros jurídicos e, também, se o direito não nascer diretamente da vontade do povo, que sobre o direito dará a última palavra, não haverá liberdade e, por conseqüência, inexistirá a justiça.
Voltamos, em parte, à Revolução francesa. A justiça deve fundar-se na igualdade e na liberdade. Mas, cuidado! Nem uma nem outra pode ser pensada sem a fraternidade e essa não admite o terror, nem a impunidade, nem a propriedade absoluta, nem a tirania das maiorias, nem o elemento aristocrático da representação política.

A FRATERNIDADE
Assinalamos, assim, a necessidade de um ordenamento jurídico compatível com a democracia social (não confundir com a social democracia de teor marxista); a existência de uma igualdade (a absoluta e a relativa) como fundamento do justo; e a garantia da liberdade, tanto no sentido dos direitos individuais e sociais protegidos pelo constitucionalismo moderno, como na acepção da liberdade dos antigos, a da participação nas decisões do governo, de maneira que a lei, em face da qual todos são iguais, por todos tenha sido elaborada.
Essas referências à justiça e suas concepções, mais a voluntas romana de dar a cada um o seu direito, são, no entanto, insuficientes, porque esbarram, primeiro, na natureza do homem, e, segundo, nas circunstâncias e consequências da própria aplicação das medidas concebidas como justas.
A natureza do ser humano, plena de ambiguidades, impede a assertiva de que o homem é um ser justo. Vale o que disse um revolucionário francês, conduzido à guilhotina: cada um de nós precisa conformar-se com duas realidades, a da velhice e a da injustiça dos homens. Essa triste característica humana não encontra refutação no fórum, o hospital do direito. O máximo que se consegue nos tribunais é a justiça identificada com a lei, que na visão positivista é medida concreta daquela, certo que o contrário, o julgamento contra a lei, consubstanciaria, sempre, uma injustiça. As Cortes não fazem justiça, aplicam a lei. E não há outra saída, salvo um certo e relativo esforço hermenêutico, com as suas limitações.
Aqueles atributos e condições da justiça, além dos impulsos injustos do homem, todas aquelas ideias vinculadas ao conceito de justiça (igualdade, liberdade, direitos humanos, princípio da pessoa, como fonte-valor de todos os valores) não resolvem a questão das exigências da justiça social na distribuição equitativa dos bens e da riqueza, nem a das condições da justiça formal no tocante à reparação dos danos e à retribuição tanto para a benemerência como para a hipótese do cometimento de ilícitos.
Por mais que se estabeleçam parâmetros e proporções, sempre a ideia de justiça esbarrará no resultados das medidas de sua aplicação. Temos, ainda, a questão do tempo, senhor da razão, com as prescrições e decadências, as extinções da punibilidade e assim por diante.
Ainda que concretamente bem aplicadas as providências pré-ordenadas, abstratamente previstas no ordenamento, como sanção ou como benefício, podem levar a sofrimentos ou a vantagens, que, por pior ou melhor que seja o agente (incluindo-se aqui o governante, o agente público e o dono do poder), podem ser incompatíveis com os nossos sentimentos. O vagabundo que não produziu os bens que lhe são distribuídos; o corrupto vitorioso usufruindo da riqueza imoral porém lícita; o criminoso, apesar de hediondo ou bárbaro, que o mal conduziu além de sua consciência, sofrendo as torturas de cárcere desumano; a minoria vencida na decisão legislativa; os privilégios inevitáveis da política mesmo social e democrática; as vantagens do capital diante do trabalho; todas as considerações que levam ao falso argumento de que a estrutura produz o homem, quando o contrário explica melhor as aberrações da história, tudo isso acarreta um pessimismo na conclusão da impossibilidade da justiça plena e absoluta. Ela somente pode ser uma busca incessante e, ainda assim, não prescinde de um fundamento derradeiro que complementa todos os outros: a fraternidade. Essa expressão da caridade não é atributo do homem comum, mas dos santos. Neles ela se expressa como uma imitação da misericórdia divina. Veja-se a parábola do filho pródigo: nada para o filho que ficou e festa para aquele estróina que se perdeu na vida, praticou todos os excessos e voltou em andrajos para o pai. Na parábola não há qualquer referência à justiça, sim à misericórdia. Enfim, a única justiça possível é a de Deus. A nossa justiça racional não O alcança. De qualquer maneira, um povo ao elaborar o seu ordenamento jurídico somente será justo se piedoso. No fundo, somente haverá justiça se ela estiver no coração do homem.
A JURISDIÇÃO
Uma reflexão sobre a justiça não pode deixar de considerar uma parte fundamental do direito e do seu ordenamento que é a prestação jurisdicional por parte da organização política que, nos últimos cinco séculos, chamamos de Estado (nacional, territorial, soberano). Poderíamos, em vez dele, lembrar a antiguidade romana e o seu conceito de povo, mas este não pode ser considerado uma “sociedade”, um ente criado hipoteticamente pela vontade dos homens para a realização de determinados fins.
Se o Estado não oferecer aos cidadãos uma mecanismo capaz de atender as demandas resultantes dos conflitos de interesses, ele será uma expressão de sua própria contradição e ambigüidade e, em consequência, não haverá justiça!
Os conflitos não resolvidos, as lides caracterizadas, na expressão de Carnelutti, por um conflito de interesse qualificado por uma pretensão resistida, são inevitáveis em qualquer convivência humana e precisam ser resolvidas pelo direito, o qual consiste na sua pré-ordenação. Esse corolário jurídico oferece os elementos para a segurança. Impõe-se, por isso, o Estado-juiz.
Para realizar esse fim, o do cumprimento de sua obrigação jurisdicional, o Estado precisa instrumentalizar-se pela construção de um aparelho judicial, a que chamamos, desde o triunfo do liberalismo (sobretudo o francês) de Poder Judiciário, incumbido de administrar a justiça (iurisdictio) e de julgar (iudicatio) , ou, em outras palavras, da jurisdição e da judicatura, no caso reunidas em um só corpo ou órgão, assumido por quem o ocupa, que é o juiz.
Diante disso, inúmeros problemas organizacionais e pessoais são colocados de maneira a serem solucionados para possibilitar, efetivamente, ao Estado cumprir com a sua, talvez, principal atribuição. Para tanto, além de meios materiais e de efetiva apoio político e institucional, há a necessidade de juízes em número razoável em face da demanda crescente que deságua nos processos. Além do número, os juízes precisam estar dotados de razoável nível técnico, moral, intelectual, cultural, que os habilitem a enfrentar a árdua missão da judicatura.
Número plural de vezes, temos repetido que o fórum é o hospital do direito, onde este, adoentado, pode sobreviver ou não; e, também, que o direito exercer a sua função, em escala muito mais expressiva, fora dos tribunais e das varas judiciais. O que é levado para os juízes consiste em uma pequenina porção, a ponta de um iceberg, debaixo da qual estão fantásticos movimentos geológicos imersos no mundo social, que o direito disciplina sem que haja a necessidade do juiz. Não obstante a atividade jurisdicional é imprescindível tanto para a existência do próprio Estado, como para a sobrevivência do direito.
Sem a lei, a atividade jurisdicional pode transformar-se em puro arbítrio. Havendo, todavia, as ordens legais, os comandos sobre as condutas, o juiz preso a eles vai dirimir os casos concretos.
Tem havido muitos equívocos a respeito desse problema, o da relação lei-juiz. Há quem sustente, com base não sei em que texto, que o juiz era a boca da lei, mas agora, ele, ao julgar vai buscar na sociedade os elementos para declarar o direito. Parece claro que o juiz não é a boca da lei (a Revolução Francesa não mexeu nos juízes do antigo regime e temia, por isso, que eles, a pretexto de interpretação, traíssem a vontade do povo expressa nos comandos legais), mas não está livre da lei. Este receio revolucionário deu na jurisdição administrativa (o contencioso) e na visível inibição da interpretação pelo Código Napoleão. Medidas contra o Judiciário.
A democracia social estabelece rígidos pressupostos para o exercício da jurisdição e para a realização da justiça. Um deles é o da igualdade das partes, o princípio dispositivo (a ação e o processo são iniciativa das partes), a inexistência de poderes investigatórios. Juiz não é parte, nem autor, nem réu, não favorece a ninguém, por mais nobres que sejam os seus sentimentos. Não pode dizer: - “julgo a favor dos ricos, porque pagam impostos e são economicamente relevantes”; ou: - “julgo a favor dos pobres, porque vivem oprimidos pelo mundo”. É vedado ao juiz preocupar-se com a defesa de uma pessoa jurídica de direito público e suprir as deficiências de sua representação, tipo: -“a União foi mal defendida, anulo o processo”.
O juiz não é um robô, mas não está livre das leis. Não é legibus (ab) solutos. O juiz, aliás, somente detém poder se cumprir os comandos legais. Pode é interpretá-los pelos critérios jurídicos. Não pode pensar de novo aquilo que já foi pensado por outrem, mas pode levar até as últimas consequências, as do direito, o que foi elaborado pelo legislador. Tenho em mente, mais ou menos, a chamada “jurisprudência dos interesses”, formulada por Philippe Heck: a pluralidade de fontes e o interesse protegido pela lei, visto no momento da aplicação da norma e não da época da edição dela. O juiz, como uma espécie de legislador “ad hoc”. Não mais que isso.
A jurisdição tem por fim a atuação concreta da lei. Não é função do Judiciário declarar o direito em tese. Deve compor os conflitos, conforme a vontade da lei, que não depende do juiz, mas que aparece no momento da existência do fato regulado pela lei. O juiz declara e torna efetiva a vontade concreta da lei, que é anterior à sentença. A norma somente pode estar antes e não depois da decisão. O juiz julga segundo as leis, não a sua bondade. E em nosso sistema, deve julgar conforme as leis e não pelos exemplos jurisprudenciais.
Se assim for, se a estrutura política efetivar uma democracia social, aplicados os princípio da igualdade, da liberdade antiga e moderna, da fraternidade e da piedade, estaremos mais próximos de realizar a vontade constante e perpétua de dar a cada um e a todos o seu direito. A lei poderá ser efetivamente considerada a medida da justiça. O ordenamento jurídico não será, tão somente, a disciplina da liberdade, mas a condição da realização do homem como ser individual e de toda a comunidade onde ele estiver situado.

Professor de Teoria Geral e Filosofia do Direito da UnB

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