Ayrton Borges Machado[2]
1
PELA
TOTALIDADE DA EXISTÊNCIA DO CASO
Como
Ministro desta Suprema Corte, ciente de toda a complexidade que o caso
apresenta, me dedicarei a expor um julgamento crítico, partindo do pensamento
crítico de Miaille (1989), através da exposição e análise da pluralidade das
faces jurídicas em direção à totalidade da existência do caso. Esta atitude me
leva a adotar neste julgamento uma postura mais interpretativa e reflexiva,
isto porque se trata como também nos ensina Dworkin, de um “caso difícil”, no
qual, em vista da situação analisada, a legalidade é insuficiente para proferir
uma decisão sobre ela, necessário é recorrer a outros padrões de interpretação (2002,
p. 36).
Em um Julgamento levanta-se
a análise e investigação sobre um fato-jurídico, mas logo me surge uma duvida
neste caso: Qual é o fato-jurídico? Seria apenas a morte de Whetmore pelos
agora réus? Em minha apreensão, este caso apresenta uma profundidade maior, que
não basta a simples correspondência entre o ato cometido pelos réus e a conduta
genericamente expressa em lei. Há que se refletir sobre questões de
ordenamento, direito penal etc. para o clareamento da obscuridade legalista.
São tais reflexões, portanto, as diversas faces jurídicas merecedoras de
análise na minha busca pela totalidade da existência do caso.
2
“DESCOBRIR”
E INTERPRETAR O DIREITO
Partindo de Dworkin, na
ausência de regras claras ao caso, precisa-se “descobrir os direitos das
partes” (2002, p. 127) fora dos muros da legalidade. Esse “dispositivo” se
confirma diante de meus olhos, pois o direito positivo, o direito que está
posto condenaria os réus sem hesitar, mesmo sendo eles, a um olhar mais
profundo, também vítimas deste caso. Se no problema ético “se pergunta não se
uma lei particular tem eficácia, mas se é equânime” (DWORKIN, p. 01), do mesmo
me deixo levar mais pela justiça de uma decisão do que pela imposição cega de
uma decisão legalista. Ao contrário do que possa supor a dogmática normativa,
minha postura não nega o direito, mas busca descobri-lo em direção à justiça.
Inicialmente, para esta
tarefa a qual me dedico proponho dois olhares de como o direito pode se
comportar: Modelo Hermenêutico e Modelo Empírico (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.
47-48). Fazer uso desses modelos, sobretudo o hermenêutico, não é negar o
normativo, mas reconhecer que se precisa transbordar a moldura defendida por
Kelsen em que o direito por vezes se aprisiona.
O modelo hermenêutico
corresponde a uma teoria interpretativa do direito, imprescindível a este caso,
sobretudo na tentativa de integração do direito (FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 80). O
caso apresenta lacunas, e a busca pela integração do direito é a de suprir o
que a legalidade deixa vaga. A lei embora conhecida “quem quer que
intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte”, é demasiada
genérica para fazer seu uso exclusivo a este caso, pois, se o normativo basta
em um caso comum, já não se pode aplicar simples e puramente a lei a este caso
que é bastante incomum.
O modelo empírico
corresponde ao direito como teoria da decisão, considerando as condições em que
é possível ser realizada, na busca da correspondência que o caso apresenta com
os diversos aspectos tecnológicos. Essa decisão se faz não só por meios
dogmáticos, mas também meios zetéticos (FERRAZ JÚNIOR, p. 46). Assim refuto a
proposta de qualificação jurídica do caso em correspondência estrita às leis,
mas que se considerem questões como o abalo emocional dos exploradores, o
estado de necessidade etc. É necessária a relevância de condições fisiológicas,
psicológicas e sociais especiais que o caso apresenta, na tentativa de,
entendendo a decidibilidade como uma necessidade de resposta do direito,
fazê-la mais justa.
3 SEGURANÇA SOCIAL E O DIREITO PENAL
Seguindo o mesmo
objetivo de enxergar a totalidade jurídica em que o caso dos exploradores se
insere, necessita-se delinear a posição de periculosidade que os réus assumem,
se isto é real ou mera formalidade. Gustav Radbruch declara o direito do dever se, sobrepor-se ao direito que é, portanto, muito embora declare a
justiça como fim do direito, para ele a segurança social é condição mínima para
sua realização (1999, p. 24). A preservação da ordem é importante, pois é ela
que assevera a realização mínima da justiça, não se pode, no entanto, pô-la
numa posição que não lhe cabe, a de superior a tudo e a todos.
No caso em questão, não
há por que dar atenção repleta de alardes à segurança social, pois, embora
importante, ela funciona neste caso como um meio irrelevante que nada impede o
fim que é a justiça. Assim, no caso pode-se evocar a justiça direta e
insistentemente como tenho feito, isto porque o assassinato de Whetmore, que
recai sobre os réus, reveste-se de diversos condicionantes como isolamento, abalos psicológicos, fisiológicos etc.
e só o cometeram por estes motivos, sobretudo de sua distância da realidade
social. É evidente que não ameaçam a ordem, muito menos promovem uma
insegurança social. Necessário é um olhar sobre a totalidade, do contrário julga-se
um recorte, uma fase de sua realização como nos alerta Miaille (1989), e
recortes da realidade são, na verdade, distorções dela.
Adentramos neste
julgamento a uma discussão profunda e latente: a função do direito penal. Esta
é outra face que o caso suscita. A esta discussão a Teoria dominante do direito
(DWORKIN, 2002) atravessa-a com enorme indiferença, pois é mais cômodo submeter
o caso a objetivos preestabelecidos e firmados em lei, do que avaliá-lo como
realmente se é merecido. Interessante é observar Hart: “Ele começa sua resposta
lembrando-nos que é errado pressupor que o direito penal (ou qualquer outro
ramo do direito) possua um conjunto de objetivos dominantes” (apud DWORKIN,
2002, p.14), portanto, submetendo os réus ao cruel julgamento legalista
asseverado, ou seja, se tivéssemos que estritamente aplicar a lei a este caso, fugir-se-ia
do direito em direção a qualquer outra coisa como a “vingança”.
Não há objetivos
preestabelecidos, mas é válido que o direito penal cumpre sim algumas funções. Se
a função do direito penal é prevenir de possíveis danos futuros à sociedade a
serem cometidos pelos réus, já fora mencionado que só cometeram o assassinato
mediante condições aterradoras, que não lhes ofereciam alternativas senão
aquela. Se a função do direito é na aplicação da pena, servir de exemplo para
outros não cometerem o mesmo ato, é fazendo rapidamente uma reflexão que se
conclui que estavam os réus em condições atípicas e complexas, na qual o
objetivo do “exemplo” é vazio e irrelevante, dada a infrequência do caso na
sociedade. Nos caminhos expostos é válido lembrar novamente Hart:
A sociedade
humana é uma sociedade de pessoas; e pessoas não vêem a si mesmas ou aos outros
meramente como corpos que se deslocam de uma maneira que, por ser às vezes
nociva, precisa ser evitada ou alterada. Em vez disso as pessoas interpretam o
movimento uma das outras como manifestações de intenções (apud Dworkin, 2002, p.
17-18)
Ainda sobre Hart,
Dworkin lembra que este afirmava: “caso abandonasse esse tipo de defesa, o
direito trataria as pessoas como meios e não como fins” (p. 18). É com esse
espírito que venho insistentemente nesta sentença realizando reflexões, e
conjeturas sobre os padrões de pensamento, a fim de fazer a decisão mais
próxima da realidade que ela necessita. Não faço este julgamento me servindo da
vida dos réus como meios para firmar um ordenamento, nem das amarras de um
modelo positivista arraigado, mas insisto em reformulá-lo na medida em que as
faces do caso me revelam e algo novo e me exigem uma leitura tão nova quanto.
O direito penal, seus
objetivos, funções e controvérsias a que o caso nos revela, ainda revestem
outro lado: a da criminalidade dos réus. Foucault (2003) realiza uma produção
extremamente fecunda para este caso, relembrando a concepção do criminoso como
inimigo interno, ou ainda como aquele que rompeu o pacto social, quando
lembrando Rousseau (p. 81). Em nenhum desses casos os réus se circunscrevem
perfeitamente: nem são inimigos internos, haja vista de sua distância do social
e nulidade de periculosidade; tampouco o que rompeu com o pacto social, cuja
ideia de que internamente eles assumem uma atitude “anti-social” é inválida
mediante sua distância do poder e sociedade que se faziam existentes.
Mais interessante ainda
a este caso é como a periculosidade é avaliada na “sociedade disciplinar”
explicada por Foucault nessa mesma conferência, na qual:
a noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao
nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das
infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento
que elas representam (Foucault, 2003, p. 85)
Portanto,
não mais na ideia de punir o “ato”, mas de vigiar e punir o ato que estão na
iminência de serem feitos (FOUCAULT, p. 85). Nesse sentido contemporâneo do
direito penal, não se pode condenar os réus de seus atos por causa de sua
distância da realidade social; tampouco por uma “conduta criminosa”, uma vez
que não são ameaças sociais, e, sobretudo, porque o Estado se mostrou ineficaz em
“disciplinar” aquela realidade.
4
CONTRATO
E ORDENAMENTO: formalidade e materialidade
Nessa
narrativa das diversas faces do caso e da análise, não posso deixar de frisar a
questão do contrato firmado por Whetmore e aceito pelos demais espeleólogos.
Nesse caminho de controvérsias depreendo que o Estado decidiu, por própria
deliberação, interferir minimamente na decisão dos homens no interior da
caverna. Isto ocorre quando necessitando de seu pronunciamento, o poder soberano
se fez ausente, omitiu-se da comunicação, e isto trouxe consigo efeitos
jurídicos. Reale (2010), ao falar de relações jurídicas expõe que não cabe ao
Estado meramente “cercar” essa relação, mas cabe a ele operá-las (p. 215), que
a meu ver inclui tanto estabelecer condições em que são possíveis tais relações,
quanto interferir nos momentos que excedem às condições defendidas juridicamente.
Portanto, quando o Estado se “silencia” é porque valida o contrato, ou o
considera como a solução mais sensata.
Outra questão que me
surge é a do ordenamento. Há que se considerar a distância não tão somente
física, mas também política do poder do Estado. A partir da ótica de Foucault
(2003), a vigília do Estado não foi capaz de intervir na “virtualidade” dos
indivíduos no interior da caverna, e pela sua negligência não pôde interferir na
realidade dos exploradores. Não conseguindo se fazer presente, pode-se questionar a imposição da ordem sobre
os réus. Não nego a existência do ordenamento, mas sob o prisma de Habermas, discursarei
sobre sua legitimidade, a fim de expor por que ela pode ser questionada sobre o
caso que julgo.
Habermas
em sua teoria da legitimidade do ordenamento discursa sobre duas formas de
legitimidade: a legitimidade formal e a legitimidade material. A legitimidade
formal é aquela em que o ordenamento se legitima pelo seu próprio corpo, pelos
poderes que ele declara e a formalidade da lei que o faz operar, essa
legitimidade opera meramente pela positivação e favorece um ordenamento como
forma de controle social. A legitimidade Material anseia por uma “matéria” que
o legitime, ou seja, aqueles que são afetados pelo ordenamento são os que o
legitimam (MIRANDA, 2009, p. 110-114).
Em vista disso, o
ordenamento que condena os réus é meramente formal, pois age de “cima para
baixo”, de modo impositivo sem considerar que as condições dentro da caverna, a
“materialidade” da situação em que se encontravam os distanciava das condições
operantes do ordenamento sobre seus “afetados”. Portanto, os réus não o
legitimavam e nem podem ser julgados e condenados privativamente pelo conteúdo
formal do ordenamento apresentado.
O conflito entre
“formal” e “material” se estende a um conflito entre uma justiça formal com uma
“justiça real”. O ordenamento que é conservador alega ser injusto superar a
legalidade, e que é a formalidade quem garante a justiça; enquanto que vejo
injustiça maior condenar os réus sem refletir sobre como o caso se comporta
dialeticamente com todas as suas condições. Para solucionar esse problema, lembro
filósofo John Rawls que diz “uma injustiça é tolerável somente quando é
necessária para evitar uma injustiça ainda maior” (1997, p. 04). Portanto, se o
legalismo promove um direito acrítico, temeroso, sobretudo, à reflexão sobre si
mesmo; ainda que alegue ser injusto superar essa legalidade infundada, é ela
mesma, em meu julgamento, a “injustiça ainda maior” citada por Rawls.
5
CLAREANDO
O ANTIDIREITO À LUZ DO PENSAMENTO CRÍTICO
Tomei a decisão de
fugir à comodidade e optei por fazer um julgamento em que conflite com uma
discursividade que é a “negação do Direito” (LYRA FILHO, 2006, p.3), “uma
discursividade enganosamente cristalina que escamoteia (...) a presença
subterrânea de uma ‘tecnologia de opressão’” (WARAT, p. 19). Optei por não
adotar o discurso obscuro e genérico legalista, mas refletir criticamente e não
simples e tecnicamente. Discurso este aparente de clareza, mas que, sobretudo
neste caso é na verdade um discurso enigmático, repleto de opacidades (WARAT,
1994, p.19-20), um discurso arraigado que favorece um interesse ideológico, que
obstrui o direito e produz um “Antidireito”.
O
que se fez até o momento foi um exercício interpretativo, crítico e dialético,
como no pensamento de Miaille (1989), buscando as diversas dimensões como se
pode visualizar o caso, abstraindo e pondo em movimento as diversas faces
jurídicas que são suscitadas, levantando os diversos conflitos possíveis, com a
finalidade de ter do caso uma compreensão cada vez “mais verdadeira” e que clareie
o “antidireito” persistente. Tendo em vista todas as fundamentações feitas, carregadas
de reflexões sociais, políticas e, sobretudo, jurídicas, voto em favor da
absolvição dos réus, não por ser uma pena alternativa à legalidade, mas que por
meio da análise crítica feita, é a decisão mais coerente e próxima do que
realidade anseia.
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1994, p. 18-29.
[1] Paper apresentado à
Matéria Introdução à Ciência do Direito, ministrada pelo Professor Doutor
Luiz Otavio Pereira, como requisito para a 3º avaliação, tendo como base a
bibliografia: FULLER, Lon L. O caso dos
exploradores de cavernas. Trad. Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo. Porto
Alegre: Fabris, 1976.
[2] Discente
regularmente matriculado na Graduação de Direito pela Universidade Federal do
Pará, cujo número de matrícula é 13641001801.
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