sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A PLURALIDADE DAS FACES JURÍDICAS NO CASO DOS EXPLORADORES

A PLURALIDADE DAS FACES JURÍDICAS NO CASO DOS EXPLORADORES[1]

Ayrton Borges Machado[2]

1      PELA TOTALIDADE DA EXISTÊNCIA DO CASO

            Como Ministro desta Suprema Corte, ciente de toda a complexidade que o caso apresenta, me dedicarei a expor um julgamento crítico, partindo do pensamento crítico de Miaille (1989), através da exposição e análise da pluralidade das faces jurídicas em direção à totalidade da existência do caso. Esta atitude me leva a adotar neste julgamento uma postura mais interpretativa e reflexiva, isto porque se trata como também nos ensina Dworkin, de um “caso difícil”, no qual, em vista da situação analisada, a legalidade é insuficiente para proferir uma decisão sobre ela, necessário é recorrer a outros padrões de interpretação (2002, p. 36).

Em um Julgamento levanta-se a análise e investigação sobre um fato-jurídico, mas logo me surge uma duvida neste caso: Qual é o fato-jurídico? Seria apenas a morte de Whetmore pelos agora réus? Em minha apreensão, este caso apresenta uma profundidade maior, que não basta a simples correspondência entre o ato cometido pelos réus e a conduta genericamente expressa em lei. Há que se refletir sobre questões de ordenamento, direito penal etc. para o clareamento da obscuridade legalista. São tais reflexões, portanto, as diversas faces jurídicas merecedoras de análise na minha busca pela totalidade da existência do caso.

2      “DESCOBRIR” E INTERPRETAR O DIREITO

Partindo de Dworkin, na ausência de regras claras ao caso, precisa-se “descobrir os direitos das partes” (2002, p. 127) fora dos muros da legalidade. Esse “dispositivo” se confirma diante de meus olhos, pois o direito positivo, o direito que está posto condenaria os réus sem hesitar, mesmo sendo eles, a um olhar mais profundo, também vítimas deste caso. Se no problema ético “se pergunta não se uma lei particular tem eficácia, mas se é equânime” (DWORKIN, p. 01), do mesmo me deixo levar mais pela justiça de uma decisão do que pela imposição cega de uma decisão legalista. Ao contrário do que possa supor a dogmática normativa, minha postura não nega o direito, mas busca descobri-lo em direção à justiça.

Inicialmente, para esta tarefa a qual me dedico proponho dois olhares de como o direito pode se comportar: Modelo Hermenêutico e Modelo Empírico (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 47-48). Fazer uso desses modelos, sobretudo o hermenêutico, não é negar o normativo, mas reconhecer que se precisa transbordar a moldura defendida por Kelsen em que o direito por vezes se aprisiona.

O modelo hermenêutico corresponde a uma teoria interpretativa do direito, imprescindível a este caso, sobretudo na tentativa de integração do direito (FERRAZ JUNIOR, 1980, p. 80). O caso apresenta lacunas, e a busca pela integração do direito é a de suprir o que a legalidade deixa vaga. A lei embora conhecida “quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte”, é demasiada genérica para fazer seu uso exclusivo a este caso, pois, se o normativo basta em um caso comum, já não se pode aplicar simples e puramente a lei a este caso que é bastante incomum.

O modelo empírico corresponde ao direito como teoria da decisão, considerando as condições em que é possível ser realizada, na busca da correspondência que o caso apresenta com os diversos aspectos tecnológicos. Essa decisão se faz não só por meios dogmáticos, mas também meios zetéticos (FERRAZ JÚNIOR, p. 46). Assim refuto a proposta de qualificação jurídica do caso em correspondência estrita às leis, mas que se considerem questões como o abalo emocional dos exploradores, o estado de necessidade etc. É necessária a relevância de condições fisiológicas, psicológicas e sociais especiais que o caso apresenta, na tentativa de, entendendo a decidibilidade como uma necessidade de resposta do direito, fazê-la mais justa.

3      SEGURANÇA SOCIAL E O DIREITO PENAL

Seguindo o mesmo objetivo de enxergar a totalidade jurídica em que o caso dos exploradores se insere, necessita-se delinear a posição de periculosidade que os réus assumem, se isto é real ou mera formalidade. Gustav Radbruch declara o direito do dever se, sobrepor-se ao direito que é, portanto, muito embora declare a justiça como fim do direito, para ele a segurança social é condição mínima para sua realização (1999, p. 24). A preservação da ordem é importante, pois é ela que assevera a realização mínima da justiça, não se pode, no entanto, pô-la numa posição que não lhe cabe, a de superior a tudo e a todos.

No caso em questão, não há por que dar atenção repleta de alardes à segurança social, pois, embora importante, ela funciona neste caso como um meio irrelevante que nada impede o fim que é a justiça. Assim, no caso pode-se evocar a justiça direta e insistentemente como tenho feito, isto porque o assassinato de Whetmore, que recai sobre os réus, reveste-se de diversos condicionantes como  isolamento, abalos psicológicos, fisiológicos etc. e só o cometeram por estes motivos, sobretudo de sua distância da realidade social. É evidente que não ameaçam a ordem, muito menos promovem uma insegurança social. Necessário é um olhar sobre a totalidade, do contrário julga-se um recorte, uma fase de sua realização como nos alerta Miaille (1989), e recortes da realidade são, na verdade, distorções dela.

Adentramos neste julgamento a uma discussão profunda e latente: a função do direito penal. Esta é outra face que o caso suscita. A esta discussão a Teoria dominante do direito (DWORKIN, 2002) atravessa-a com enorme indiferença, pois é mais cômodo submeter o caso a objetivos preestabelecidos e firmados em lei, do que avaliá-lo como realmente se é merecido. Interessante é observar Hart: “Ele começa sua resposta lembrando-nos que é errado pressupor que o direito penal (ou qualquer outro ramo do direito) possua um conjunto de objetivos dominantes” (apud DWORKIN, 2002, p.14), portanto, submetendo os réus ao cruel julgamento legalista asseverado, ou seja, se tivéssemos que estritamente aplicar a lei a este caso, fugir-se-ia do direito em direção a qualquer outra coisa como a “vingança”.

Não há objetivos preestabelecidos, mas é válido que o direito penal cumpre sim algumas funções. Se a função do direito penal é prevenir de possíveis danos futuros à sociedade a serem cometidos pelos réus, já fora mencionado que só cometeram o assassinato mediante condições aterradoras, que não lhes ofereciam alternativas senão aquela. Se a função do direito é na aplicação da pena, servir de exemplo para outros não cometerem o mesmo ato, é fazendo rapidamente uma reflexão que se conclui que estavam os réus em condições atípicas e complexas, na qual o objetivo do “exemplo” é vazio e irrelevante, dada a infrequência do caso na sociedade. Nos caminhos expostos é válido lembrar novamente Hart:

A sociedade humana é uma sociedade de pessoas; e pessoas não vêem a si mesmas ou aos outros meramente como corpos que se deslocam de uma maneira que, por ser às vezes nociva, precisa ser evitada ou alterada. Em vez disso as pessoas interpretam o movimento uma das outras como manifestações de intenções (apud Dworkin, 2002, p. 17-18)

Ainda sobre Hart, Dworkin lembra que este afirmava: “caso abandonasse esse tipo de defesa, o direito trataria as pessoas como meios e não como fins” (p. 18). É com esse espírito que venho insistentemente nesta sentença realizando reflexões, e conjeturas sobre os padrões de pensamento, a fim de fazer a decisão mais próxima da realidade que ela necessita. Não faço este julgamento me servindo da vida dos réus como meios para firmar um ordenamento, nem das amarras de um modelo positivista arraigado, mas insisto em reformulá-lo na medida em que as faces do caso me revelam e algo novo e me exigem uma leitura tão nova quanto.

O direito penal, seus objetivos, funções e controvérsias a que o caso nos revela, ainda revestem outro lado: a da criminalidade dos réus. Foucault (2003) realiza uma produção extremamente fecunda para este caso, relembrando a concepção do criminoso como inimigo interno, ou ainda como aquele que rompeu o pacto social, quando lembrando Rousseau (p. 81). Em nenhum desses casos os réus se circunscrevem perfeitamente: nem são inimigos internos, haja vista de sua distância do social e nulidade de periculosidade; tampouco o que rompeu com o pacto social, cuja ideia de que internamente eles assumem uma atitude “anti-social” é inválida mediante sua distância do poder e sociedade que se faziam existentes.

Mais interessante ainda a este caso é como a periculosidade é avaliada na “sociedade disciplinar” explicada por Foucault nessa mesma conferência, na qual:

a noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam (Foucault, 2003, p. 85)

            Portanto, não mais na ideia de punir o “ato”, mas de vigiar e punir o ato que estão na iminência de serem feitos (FOUCAULT, p. 85). Nesse sentido contemporâneo do direito penal, não se pode condenar os réus de seus atos por causa de sua distância da realidade social; tampouco por uma “conduta criminosa”, uma vez que não são ameaças sociais, e, sobretudo, porque o Estado se mostrou ineficaz em “disciplinar” aquela realidade.

4      CONTRATO E ORDENAMENTO: formalidade e materialidade

            Nessa narrativa das diversas faces do caso e da análise, não posso deixar de frisar a questão do contrato firmado por Whetmore e aceito pelos demais espeleólogos. Nesse caminho de controvérsias depreendo que o Estado decidiu, por própria deliberação, interferir minimamente na decisão dos homens no interior da caverna. Isto ocorre quando necessitando de seu pronunciamento, o poder soberano se fez ausente, omitiu-se da comunicação, e isto trouxe consigo efeitos jurídicos. Reale (2010), ao falar de relações jurídicas expõe que não cabe ao Estado meramente “cercar” essa relação, mas cabe a ele operá-las (p. 215), que a meu ver inclui tanto estabelecer condições em que são possíveis tais relações, quanto interferir nos momentos que excedem às condições defendidas juridicamente. Portanto, quando o Estado se “silencia” é porque valida o contrato, ou o considera como a solução mais sensata.

Outra questão que me surge é a do ordenamento. Há que se considerar a distância não tão somente física, mas também política do poder do Estado. A partir da ótica de Foucault (2003), a vigília do Estado não foi capaz de intervir na “virtualidade” dos indivíduos no interior da caverna, e pela sua negligência não pôde interferir na realidade dos exploradores. Não conseguindo se fazer presente,  pode-se questionar a imposição da ordem sobre os réus. Não nego a existência do ordenamento, mas sob o prisma de Habermas, discursarei sobre sua legitimidade, a fim de expor por que ela pode ser questionada sobre o caso que julgo.

            Habermas em sua teoria da legitimidade do ordenamento discursa sobre duas formas de legitimidade: a legitimidade formal e a legitimidade material. A legitimidade formal é aquela em que o ordenamento se legitima pelo seu próprio corpo, pelos poderes que ele declara e a formalidade da lei que o faz operar, essa legitimidade opera meramente pela positivação e favorece um ordenamento como forma de controle social. A legitimidade Material anseia por uma “matéria” que o legitime, ou seja, aqueles que são afetados pelo ordenamento são os que o legitimam (MIRANDA, 2009, p. 110-114).

Em vista disso, o ordenamento que condena os réus é meramente formal, pois age de “cima para baixo”, de modo impositivo sem considerar que as condições dentro da caverna, a “materialidade” da situação em que se encontravam os distanciava das condições operantes do ordenamento sobre seus “afetados”. Portanto, os réus não o legitimavam e nem podem ser julgados e condenados privativamente pelo conteúdo formal do ordenamento apresentado.

O conflito entre “formal” e “material” se estende a um conflito entre uma justiça formal com uma “justiça real”. O ordenamento que é conservador alega ser injusto superar a legalidade, e que é a formalidade quem garante a justiça; enquanto que vejo injustiça maior condenar os réus sem refletir sobre como o caso se comporta dialeticamente com todas as suas condições. Para solucionar esse problema, lembro filósofo John Rawls que diz “uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior” (1997, p. 04). Portanto, se o legalismo promove um direito acrítico, temeroso, sobretudo, à reflexão sobre si mesmo; ainda que alegue ser injusto superar essa legalidade infundada, é ela mesma, em meu julgamento, a “injustiça ainda maior” citada por Rawls.

5      CLAREANDO O ANTIDIREITO À LUZ DO PENSAMENTO CRÍTICO

Tomei a decisão de fugir à comodidade e optei por fazer um julgamento em que conflite com uma discursividade que é a “negação do Direito” (LYRA FILHO, 2006, p.3), “uma discursividade enganosamente cristalina que escamoteia (...) a presença subterrânea de uma ‘tecnologia de opressão’” (WARAT, p. 19). Optei por não adotar o discurso obscuro e genérico legalista, mas refletir criticamente e não simples e tecnicamente. Discurso este aparente de clareza, mas que, sobretudo neste caso é na verdade um discurso enigmático, repleto de opacidades (WARAT, 1994, p.19-20), um discurso arraigado que favorece um interesse ideológico, que obstrui o direito e produz um “Antidireito”.

            O que se fez até o momento foi um exercício interpretativo, crítico e dialético, como no pensamento de Miaille (1989), buscando as diversas dimensões como se pode visualizar o caso, abstraindo e pondo em movimento as diversas faces jurídicas que são suscitadas, levantando os diversos conflitos possíveis, com a finalidade de ter do caso uma compreensão cada vez “mais verdadeira” e que clareie o “antidireito” persistente. Tendo em vista todas as fundamentações feitas, carregadas de reflexões sociais, políticas e, sobretudo, jurídicas, voto em favor da absolvição dos réus, não por ser uma pena alternativa à legalidade, mas que por meio da análise crítica feita, é a decisão mais coerente e próxima do que realidade anseia.

 
REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. Teoria do Direito. In. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 1-22.

DWORKIN, Ronald. O Modelo de Regras I. In. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35-72.

DWORKIN, Ronald. Casos difíceis. In. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127-128.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O campo teórico da ciência do direito. In. A ciência do direito. 2. Ed. São Paulo: Atlas; 1980, p. 40-49.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito como teoria da interpretação. In. A ciência do direito. 2. Ed. São Paulo: Atlas; 1980, p. 68-86.

_____________________________. A ciência do direito como teoria da decisão. In. A ciência do direito. 2. Ed. São Paulo: Atlas; 1980, p. 87-108.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Trad. Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.

FOULCAULT, Michel. Conferência 4. In. As verdades e as formas jurídicas. 3. Ed. Trad Roberto Cabral de Melo Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2003, p. 79-102.

LYRA FILHO, Roberto. Direito e lei. In. O que é direito. 17. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 3-6

MIAILLE, Michel. Introdução. In. Introdução crítica ao direito. 2. Ed. Trad. Ana Prata. Lisboa: Estampa, 1989, p. 15-30.

MIRANDA, M. da S. O mundo da vida e o Direito na obra de Jürgen Habermas. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 97-119, jan./jun. 2009.1

RADBRUCH, Gustav. Direito. In. Introdução à ciência do direito. Trad. Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 01-35.

RAWLS, John. A justiça como equidade: o papel da justiça. In. Uma teoria da Justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves.São Paulo: Martins Fontes, 1997; p. 03-07.

REALE, Miguel. Dos Fatos e Atos Jurídicos. In. Lições preliminares de dieito. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 199-226.

WARAT, Luis Alberto. Utopias, conceitos e cumplicidades na interpretação da lei. In. Introdução Geral ao Direito, I Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: SAFE - FABRIS. 1994, p. 18-29.
 


[1] Paper apresentado à Matéria Introdução à Ciência do Direito, ministrada pelo Professor Doutor Luiz Otavio Pereira, como requisito para a 3º avaliação, tendo como base a bibliografia: FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Trad. Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.
[2] Discente regularmente matriculado na Graduação de Direito pela Universidade Federal do Pará, cujo número de matrícula é 13641001801.

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