quarta-feira, 21 de setembro de 2011

OS ASPECTOS PENAIS EM OS MISERÁVEIS

ANNA CAROLINA SANTOS
VITOR MARCELLINO TAVARES DA SILVA



1 UMA BREVE NARRATIVA
O livro “Os Miseráveis” de autoria do romancista francês Victor Hugo, trata da história de Jean Valjean, um homem que por ter furtado um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos que passavam fome, passa 19 anos cumprindo pena nas galés. Na verdade sua pena original era de apenas 5 anos no entanto, no final do quarto ano nas galés, Jean Valjean tentou fugir. Após ser recapturado, foi condenado a mais três anos. Quando cumpriu seis anos da sua pena, uma nova tentativa frustrada de fuga. E o mesmo se repetiu no décimo ano e no décimo terceiro, até completar dezenove anos.
2 O MITO DA RESSOCIALIZAÇÃO
Ao sair da prisão Jean recebe seu documento de identificação. Era diferente, amarelo. Nele estava escrito que se tratava de um homem perigoso, que havia cumprido dezenove anos de pena por furto nas galés. A cor e a mensagem que o documento trazia tinha como objetivo deixar absolutamente evidente que aquele era um cidadão diferente dos outros. E de fato era, se tornara. Após cumprir os dezenove anos de pena por um simples roubo de pão, Victor Hugo retratou a desumanização de Jean Valjean nas seguinte palavras:
Por tentar roubar um pão. Durante a prisão, o inofensivo podador de árvores tornou-se um homem temível.Tinha ódio da lei e da sociedade. Por consequência, de toda a humanidade. De ano para ano, sua alma foi se tornando amarga. Desde que fora preso, há dezenove anos, Jean Valjean não soltava uma lágrima. Quando saiu, acreditou que podia ter uma nova vida. Mas recebeu uma quantia miserável pelos dezenove anos de trabalhos forçados. Seu documento de identificação dizia se tratar de um homem perigoso. Logo arrumou um trabalho para descarregar fardos, pois era muito forte. Ao receber, ganhou menos do que os outros por ser um ex-condenado. Sentia-se escorraçado (HUGO, 2009, p.101).
Victor Hugo faz questão de ressaltar a forma como Jean Valjean saí do cárcere. Escorraçado. Em outra passagem, o autor informa que nas galés, Jean não tinha um nome, mas um número 24.601. Percebe-se que de todas as maneiras a sociedade busca acabar com tudo que de humano uma pessoa pode ter. Sua identidade, quando estava cumprindo a pena e sua dignidade ao finalmente voltar à “liberdade”. De repente, Jean Valjean, de humano, transforma-se em apenas mais um “ser”. Ao ler a passagem acima, as lembranças da contemporaneidade vêm à tona em uma velocidade sufocante. O caráter atemporal da obra em questão é rapidamente visualizado e nota-se que o caráter- ou a falácia – ressocializador do direito penal na verdade funciona às avessas.
Ojeriza-nos ao pensarmos em um sistema penal tão além do objetivo da ressocialização, pelo qual perpassam a idade contemporânea, onde predominava o que Michel Foucault chamou de Vingança Legal (FOUCAULT, 1977, p.99). A obra pública da pena deveria atingir dois objetivos, o cabresto moral, no intuito de um controle visível do que não se pode fazer, através dos espetáculos em praças públicas das penas aplicadas ao condenado e o castigo de utilidade secundária (FOUCAULT, 1977, p. 103), com escopo vingativo.
3 A PROPORCIONALIDADE DA PENA
Quando Jean Valjean é preso por roubar um pão, identificamos em seu personagem muitos brasileiros que cometem esse tipo de “delito”, se é assim que podemos chamar o resultado da omissão do Estado, e que com toda força do aparato estatal é miseravelmente vilipendiado. O Estado de Direito, vivenciado naquela época exigia o cumprimento da lei, os princípios como mecanismos de balanceamento de direitos, que devem integrar a valoração judicial das leis e as decisões, e que orbitam atualmente no direito penal, não existiam, por esse motivo percebemos uma desproporcionalização, no crime cometido e na pena aplicada. Princípios como da insignificância, da proporcionalidade e da responsabilidade social são claramente violados. Obrigar um homem a pagar uma pena de 19 anos de trabalhos forçados por roubar um pão, é de clara e evidente manifestação do reduto doloroso da proscrição do homem pelo próprio homem.
Jean Valjean alcançou níveis de miséria que ultrapassam o estado físico do ser humano, olhar algoz da sociedade e a brutalidade da pena, atinge níveis de crueldade inexoráveis, ao atingir a sua moral subjetiva, ele por um momento concebe a pena como justificável. O raciocínio se constrói da seguinte maneira, conduta antinormativa, crime, aplicação da pena. Tornar um homem inflexível diante de seus próprios infortúnios é condená-lo a uma pena que se postergará na sua vida, através da “autoflagelação” e a rudez do julgamento alheio. É neste ponto que encontramos a falácia do sistema penal que outrora se figurava em castigos físicos, penas de caráter perpétuo e a pena de morte, e que hoje como um veneno que mata aos poucos, penaliza os indivíduos, trancafiando-os em celas para que dessa forma possam aprender a viver em sociedade. Mas, como ensinar um homem a viver livre, prendendo-o?
O Estado Democrático de Direito defende através das leis uma gama de garantias fundamentais, baseadas no chamado "Princípio da Dignidade Humana". O Direito Penal brasileiro é um mecanismo utilizado como ultima ratio, o poder incriminador do Estado só se legitima se a criminalização de uma conduta se constituir meio necessário a proteção de um bem de grande relevo. Além do mais, a pena deve ser galgada pelo princípio da proporcionalidade e da racionalidade. Então porque diante de tantos mecanismos legais ainda há violações humanas? Ainda há pessoas presas por crimes famélicos? Há em tudo isso uma correlação absorta do que até hoje nos perguntamos: Qual o verdadeiro sentido do direito? Resolução de conflitos e a paz social? Aparentemente resolve-se o conflito, crime-castigo, mas é possível a paz social na carceragem brasileira? A resposta só pode ser negativa, então o sistema de julgar, condenar e penalizar, em que se finca o direito penal, apresenta-se falho.
A máxima do direito penal enxerga na pena um caráter ressocializador, mas ao contrário do que acontece, o indivíduo apenado, apenas introjeta as ideias e regras, ele não assimila que ao cometer um crime não está somente indo de encontro a uma regra, mas está causando um malefício a alguém. Ademais a mão punitiva do estado permite não a resolução do conflito por inteiro, ou seja, fazer o indivíduo compreender suas ações, mas de controle social, de eliminação do que não é legalmente aceito e moralmente correto.
3 O ESTIGMA DO CÁRCERE E A VIOLÊNCIA DA “LIBERDADE”
Por meio da literatura, Victor Hugo também transporta o leitor a um outro problema que é enfrentado desde o século XIX, tempo em que o livro foi escrito, até os dias atuais. O estigma que o condenado recebe ao sair do cárcere. De uma forma poética, o autor convida o leitor a apreciar o tema pela ótica do apenado. Jean encara sua condenação como uma doença degenerativa que corrói todo o seu futuro e envergonha o passado, transportando-o a um “tempo que não passa”, a um presente sem futuro e sem volta.
O que não se percebe a primeira vista é a parcela de culpa que a sociedade tem na existência do crime, simbolizada pelo autor na recusa de todas as estalagens em receber Jean quando o mesmo chega à pequena cidade de Digni. Por meio da metáfora das portas fechadas, o autor demonstra a forma como o corpo social recebe de o ex-criminoso, que na verdade não ganha o prefixo “ex” ao cumprir sua pena. A representação do fechar das portas transporta o leitor às próprias portas da vida, às oportunidades que são reiteradamente fechadas no exato momento em que se tem a notícia de que se trata de um ex-prisioneiro. A realidade atual não mostra algo muito diferente do retratado em “Os Miseráveis”. Sem capacitação e oportunidades, os ex- condenados em grande parte das vezes por subsistência, acabam voltando a cometer crimes.
Ironicamente, dada à época em que a obra foi escrita, após sucessivas tentativas infrutíferas de se hospedar em uma estrebaria, um padre é quem acolhe Jean no meio da noite fria. Por meio da figura do padre o autor revela sua crença na humanidade do homem. É basicamente ele, quem volta a humanizar a sociedade, demonstrando a presença das ideias de Rousseau e do seu “Estado de Natureza”, no tempo em que a obra foi escrita.
No desenrolar da história, Jean torna-se um homem honesto e correto, comprovando a ideia do autor de que o homem é bom, desde que a sociedade não vede as oportunidades para ele. Ao final da obra compreende-se que o grande homem virtuoso é o ex-condenado, o padre mesmo antecipa a percepção que o autor tem do crime: “o pecado faz parte da vida, o que deve se buscar é pecar menos”. Para ele os erros são absolutamente normais, e a questão da humanidade dos homens para além da solidariedade e do bom comportamento, também pode ser verificada na reconstrução do próprio homem, em uma espécie de “reumanização”.
4 O PAPEL DO ESTADO E DO APLICADOR DA NORMA
Durante todo o seu processo de “reumanização” Jean Valjean é por diversas vezes perseguido por um policial, Javert, que mesmo depois de passados muitos anos, tenta sempre “cumprir a lei”. É a obediência cega à norma que caracteriza o policial Javert que não chega a se tornar o vilão da história unicamente por conta do caráter existencial – como se percebe no excerto abaixo - do motivo que o leva a perseguir incansavelmente Jean, o dever de cumprir a lei.
(...) Vivia um dilema: entregar Jean Valjean seria ingratidão. Deixá-lo livre, uma traição para com seu dever de policial. Seu ideal sempre fora mostrar-se inflexível no cumprimento do dever. Mas o antigo forçado fora generoso e bom. Não compreendia como era possível. Só havia uma maneira de resolver o dilema, a seu ver. Tirou o chapéu e colocou-o sobre a amurada. Subiu ao parapeito. Pulou no rio. Ouviu-se um baque. As águas sepultaram para sempre o inspetor Javert.

Victor Hugo sutilmente ilustra o conflito entre regra e princípio, transporta para a vida de Javert, um dilema que acaba por lhe tirar a vida: cumprir o dever normativo nem sempre é o correto a se fazer.
Por ter uma visão estritamente positiva da lei, Javert assim como muitos juristas contemporâneos, não conseguem perceber a impossibilidade das leis em abarcar a totalidade de casos e a complexidade que o mundo real apresenta. Cabe, portanto, ao aplicador da lei, ilustrado pelo simples policial, fazer a ponte e perceber o momento em que a irracionalidade está justamente em seguir o racional, a ordem jurídica. O direito não pode se tornar instrumento de promoção de injustiças sob pena de perder seu propósito de existir.
5 A REFLEXÃO
A obra nos parece arrastar por um imaginário do direito que puni, julga e elimina os atos contrários ao ordenamento jurídico e uma sociedade que exclui, rechaça e encarcera os infortúnios alheios, mesmo o indivíduo estando em liberdade. Afinal, até onde está o limite da pena? Seria um ultraje falarmos que hoje, diante da criação dos Direitos Humanos todas as angustias do direito foram solucionadas e maximização dos escopos da punição foram alcançados. Mas, o direito positivado escorre pelos ralos do poder judiciário, e a ausência da efetivação do que o torna tão bonito teoricamente se perde no abstrativismo das respostas não solucionadas: Porque o homem continua em um estado animalesco de cárcere, mesmo enquanto encontra-se em liberdade?

Análise do livro “Os Miseráveis” de Victor Hugo apresentada à matéria Direito e Literatura ministrada pelo docente Luiz Otávio Pereira.


REFERÊNCIAS
HUGO, Victor. Os Miseráveis. 13ed. Cosac Naify: 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3ed. Petrópolis: Vozes: 1977.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 5ed. São Paulo: Martins Claret: 2010.

3 comentários:

  1. O texto é muito bom, porém, acho que deve melhorar a formatação. Pois um texto extenso em formato corrido é um pouco cansativo. Mas o conteúdo tá uma joinha :D

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  2. Nossa gostei muito, muito bom ... Parabéns .

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