terça-feira, 6 de setembro de 2011

O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO

UM RETRATO FICCIONAL DO PARADIGMA JURÍDICO MODERNO

VICTOR RUSSO FRÓES RODRIGUES
WILKE FERREIRA DA LUZ


O conto é um gênero literário curto, conciso, no mais das vezes com núcleo único, linearmente construído (com raras oportunidades de flashback), que impõe restrições à elaboração de personagens. A vida não. Tampouco a vida jurídica, com seus personagens quase infinitos, seus múltiplos núcleos, sua complexidade cada vez maior (fenômeno jurídico). Como, então, um conto aparentemente afastado do rigor metodológico-científico do Direito, esse muitas vezes hermético aos não-juristas, pode nos remeter a digressões e extensões que aproximam realidade e ficção jurídicas? Em resposta, valemo-nos de Claudio Weber Abramo: “O poder da literatura reside em propiciar a abordagem de seus temas de modo metafórico. Conceitos para cuja expressão formal se exigem rigores metodológicos podem, na obra literária, ser transmitidos numa frase, numa reticência”. (ABRAMO, 2002, p. 5). E é metaforicamente que “O Homem de Cabeça de Papelão”, de João do Rio, nos chama à análise jurídica. Vamos a ela.

1 BREVE RESUMO

No conto, Antenor é um cidadão do País do Sol discriminado por seus compatriotas. Os motivos da discriminação são os fatos de Antenor FALAR A VERDADE e PENSAR. Destoante do restante da população, o pensador se viu alijado do convívio social e do trabalho, recebendo constantes conselhos de que “ajeitasse sua má cabeça”, visto que não se enquadrava no Bom Senso pregado pela sua sociedade. Com ânsia de casar-se com Maria Antônia (filha da lavadeira de sua mãe), Antenor vê-se encurralado entre o amor/pressão e o seu modo de vida pautado pela verdade. Fortunadamente (ou infortunadamente), Antenor depara-se com uma relojoaria e lá descobre que pode deixar sua cabeça para conserto, recebendo em troca uma cabeça de papelão, fabricadas em série. A partir daí, o novo Antenor galga as maiores posições sociais, a fama e a fortuna, trapaceando e mentindo. Aclamado por seus agora pares, após algum tempo ele novamente defronta-se com a relojoaria, no que lembra de sua antiga cabeça. Em conversa final com o relojoeiro, esse lhe diz que sua cabeça sempre esteve em perfeito estado, sendo uma das mais geniais com que já se deparara. No momento de reavê-la, entretanto, Antenor pede ao relojoeiro que embrulhe-a, pois irá guardá-la, terminando com a cabeça de papelão. Ele tornara-se um deles.

2 CRÍTICAS SUBMERSAS

Após esse pequeno resumo do conto em lume, analisemos as críticas metaforicamente feitas por João do Rio, escritor e jornalista carioca, nascido no fim do século XIX e falecido no início do século XX.
Primeiramente, o cenário da capital do País do Sol pintado pelo autor combina com uma visão da sociedade complexa encontrada nos dias atuais e na qual o Direito encontra-se submerso. Vejamos uma passagem do conto que ilustra a capital:

Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral.

Facilmente perceptível é a semelhança com a sociedade que estava sendo construída na época do autor e que veio a concretizar-se posteriormente. Já dizia Louis Assier-Andrieu: “O direito é uma realidade social” (2000, p. XI). Logo, o Direito refletirá a complexidade social da cidade moderna, marcada por suas instituições superestruturais (o Governo, os partidos, o próprio Direito, etc), de acordo com o conceito criado por Karl Marx.
Outro aspecto importante a ser abordado no conto é a situação do personagem principal, Antenor. Por que ele era socialmente mal visto? Por que nunca se estabilizava em emprego nenhum? Mais uma vez analisemos trechos do conto:

Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que tinha até sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma de seus concidadãos.

Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria.

- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

Antenor sempre fora discriminado por FALAR A VERDADE e PENSAR. Um paralelo dessa situação é o encontrado no Direito: o embate do dogmatismo X contradogmatismo. Entenda-se aqui a utilização dessas duas expressões tanto no seu lado romântico, como diria Luis Alberto Warat (WARAT, 1994, p. 86), quanto no seu lado crítico. Mais uma vez, metaforicamente podemos utilizar-nos da literatura para a inserção de discussões jurídicas, especificamente no âmbito da Teoria do Direito.
O dogmatismo jurídico tem como sentido comum a intransigência, o formalismo, a observância somente do que as normas prescrevem (FERRAZ JR., 2008). Fundado no princípio da inegabilidade dos pontos de partida (LUMANN, 1974 apud FERRAZ JR., 2008, p. 25), o dogmatismo se assemelha à maioria da população da capital do País do Sol, pois reluta em aceitar mudanças, execra o diferente, impossibilita o pensamento crítico-reflexivo. E é essa a tônica dos cursos de Direito há séculos: pautado no dogma do “positivismo exegético-normativista. E, nessas condições, não possibilita a formação de operadores jurídicos críticos, reflexivos e preocupados com a função social do Direito” (HUPFFER, 2008, p. 24). O que no conto representa o Bom Senso para os moradores do País do Sol, analogamente representa a Segurança Jurídica para os dogmáticos positivistas.
No entanto, temos o cuidado de aqui explicitar o apontamento de Warat em relação à visão unicamente negativa da dogmática jurídica, que não deve ser absoluta:

Não tenho dúvidas, que o movimento contradogmático só pode continuar vital no cair no kitsch, se abandonar as suas formas passadas, se construir a sua memória e aceitar o lado positivo da dogmática jurídica. O tempo das negações absolutas já passou, repetí-lo agora é construir um anarquismo ingênuo (WARAT, 1994, p. 83).

3 O DESFECHO DE UM CONTO JURÍDICO

Impressionantemente, um conto escrito há mais de um século pôde desvelar tantos caminhos para análises jurídicas atuais, e note-se que somente exploramos a ponta do iceberg. “O Homem de Cabeça de Papelão”, por seu título, enquadraría-se como pseudônimo para milhares de bacharéis em Direito formados pelos mais de 1.200 cursos de Direito no Brasil. “Alunos” (sem luz mesmo) que já entram sendo deformados por uma cultura de educação jurídica que não muda há séculos, conforme explicita Tércio Sampaio Ferraz Jr: “Na verdade, nos últimos 100 anos, o jurista teórico, por sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista” (FERRAZ JR., 2008, p. 25). Refere-se ele ao ensino dogmático-técnico do Direito.
Por fim, mais uma vez o conto estudado nos alumina o pensamento com uma crítica, na voz do tio de Antenor:

- Ouça! – bradava o tio – Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

Antenor não aceitou o “conselho” de ser bacharel somente para obter prestígio político e social. Ainda não tinha cabeça de papelão.

Ensaio produzido para a matéria Direito e Literatura ministrada pelo Professor Luiz Otávio Pereira, a partir da leitura do livro: O homem de cabeça de papelão de João do Rio.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Claudio Weber. Apresentação In. Corrupção: 18 contos. Org. Rodrigo Penteado. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. Trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

COSTA, Alexandre Bernardino. A teoria do direito na modernidade da sociedade moderna In. Notícias do Direito Brasileiro. Brasília: UNB.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

HUPFFER, Haide Maria. Ensino jurídico: um novo caminho a partir da Hermenêutica Filosófica. Viamão, RS: Entremeios Editora, 2008.

WARAT, Luis Alberto. O outro lado da dogmática jurídica In. Teoria do Direito e do Estado. Organizado por Leonel Severo Rocha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

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