A
FRONTEIRA ENTRE A ÉTICA E A LITERATURA: por uma Ética do Retorno[1]
ANA
PAULA MEDEIROS DE MOURA[2]
Aquilo que dá sentido
à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido
Milan Kundera
INTRODUÇÃO
Publicado
em 1984, o livro “A Insustentável Leveza do Ser”, do autor tcheco Milan
Kundera, surpreende com a abordagem da Ética nas condutas humanas. Kundera
escreve sobre o relacionamento humano e cultural a partir da ótica de
diferentes sujeitos ficcionais que possuem diferentes posicionamentos perante à
vida. A estória é ambientada no contexto da Primavera de Praga (invasão das
tropas russas à Tchecoslováquia, atual República Tcheca e Eslováquia, em 21 de
agosto de 1968) e Kundera preocupa-se com a descrição e reflexão acerca desse
momento histórico e político concreto em que estava imerso. A fantasia se lança
como possibilidade de reflexão sobre contextos reais.
Este
trabalho visa elencar alguns dos principais temas observados na narrativa,
procedendo um estudo das personagens Tomas, Tereza, Sabina e Franz, e propondo
possíveis reflexões e leituras acerca da problematização Ética desenvolvida por
Kundera. O trabalho avaliará a obra literária, enquanto ficção, não objetivando
discorrer acerca do contexto histórico-político presente na obra, tampouco o
negligenciando ou secundarizando[3]. Tem se consciência da
correlação texto-contexto e parte-se dessa interpretação, evitando-se
anacronismos. Para cumprir tal finalidade, divide-se em capítulos que abordam sistematicamente
os temas explorados por Kundera, iniciando por tópico decisivo, com a exposição
do postulado filosófico-moral basilar contido na obra, e culmina em conclusão
acerca da relevância da mesma.
1 A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA AÇÃO MORAL
O
“Eterno Retorno”, conceito desenvolvido pelo filósofo Friedrich Nietzsche, é citado
por Kundera logo à introdução de seu romance e estimula reflexões acerca das
possibilidades existenciais do sujeito; acerca do sentido da existência humana.
Para Nietzsche, essa “lei originária” se traduz na idéia de que “pólos” ou
“faces complementares” de uma mesma realidade (dual) se alternam nas vivências
em uma eterna repetição e, consequentemente, subordina à infinitude temporal a
ocorrência de um número limitado de fatos, isto é, de possibilidades
existenciais[4].
O Eterno Retorno condicionaria a vida humana e, à primeira vista, a esvaziaria
de quaisquer sentidos possíveis de serem aferíveis, de acordo com a leitura
feita por Kundera:
O
eterno retorno nos diz, por negação, que a vida, que vai desaparecer de uma vez
por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem
peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais
esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm o menor
sentido (KUNDERA, 1984, p. 7).
À
inevitável constatação da efemeridade da vida e das situações existenciais, e,
portanto, à confirmação de sua “esplêndida leveza” (KUNDERA, 1984, p. 8),
Kundera subjaz a tese do Eterno Retorno como saída possível para a reafirmação
(dionisíaca) do sentido da própria existência e das inclinações da ação prática
humana (moral); o fato de um acontecimento ou gesto “se repetir um número
incalculável de vezes no eterno retorno” (KUNDERA, 1984, p. 7) o modifica: ele
aparece “sem a circunstância atenuante de sua fugacidade” (KUNDERA, 1984, p.
8). Afinal, “como condenar o que é efêmero?” (KUNDERA, 1984, p. 8):
Se a
Revolução Francesa tivesse que se repetir eternamente, a historiografia
francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas como ela trata de uma
coisa que não voltará, os anos sangrentos não são mais que palavras, teorias,
discussões – são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma
enorme diferença entre um Robespierre que não aparece senão uma vez na história
e um Robespierre que voltasse eternamente cortando a cabeça dos franceses
(KUNDERA, 1984, p. 7)
O
que parece um fundamento cosmológico, ou hipotético-metafísico vazio ganha
implicações éticas imensas na perspectiva de Kundera. O desenrolar da obra – na
qual a descrição de um tempo histórico real e politicamente opressivo converge
à ficção ou ao desenvolvimento de enredos romanesco-eróticos das personagens
protagonistas – será constantemente permeado por alusões ao postulado
nietzscheano. Em um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do
retorno, tudo é perdoado por antecipação “e tudo é, portanto, cinicamente perdido”
(KUNDERA, 1984, p. 8).
No
mundo do Eterno retorno “cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza”
(KUNDERA, 1984, p. 8). Para Kundera, esse era o motivo pelo qual Nietzsche
dizia “que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos” (KUNDERA,
1984, p. 8).
O mais
pesado dos pesos. - E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua
mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives e
como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não
haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e
tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar,
e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar
entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna
ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha
da poeira!" - Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e
amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante
descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais
divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te
transformaria e talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada
coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o
mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem
contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última,
eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 1987, p. 164 -165).
“Mas,
na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?” (KUNDERA, 1984, p. 8). O mais
pesado dos fardos nos esmaga, nos faz vergar humildemente a seu peso. De outra
face, a completa ausência de fardo faz com que o ser humano se torne tão leve
quanto o ar;
Que ele
voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne
semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes (KUNDERA,
1984, p. 9).
“Então
o que escolher? O peso ou a leveza?” (KUNDERA, 1984, p. 9).
2 DECIDIBILIDADE OU ÉTICA DA DECISÃO: A
LEVEZA OU O PESO
Após
breve introdução filosófica, acerca da discussão do fundamento moral que
sustenta a narrativa, Kundera inicia a obra ficcional propriamente dita.
Apresenta-nos, então, Tomas; homem jovem e atraente, médico-cirurgião, de
comportamento singular, que não encontra dificuldades em aventurar-se
amorosamente. Tomas é a personagem através da qual Kundera ilustra as
conseqüências da decidibilidade, da tomada de decisão, do comprometimento (figurativamente
representado pelo “peso”) e da liberdade (figurativamente representada pela
“leveza”) para com situações quaisquer ou corriqueiras:
Há
muitos anos penso em Tomas. Mas foi sob a luz dessas reflexões que o vi
claramente pela primeira vez. Eu o vejo de pé, a uma das janelas de seu
apartamento, com os olhos fixos na parede do prédio defronte, do outro lado do
pátio, sem saber o que fazer (KUNDERA, 1984, p. 9).
Que
fazer? Que atitude ou decisão tomar ante as nuances de vivências que se
complementam e dão o colorido da vida? Essa é a pergunta que Kundera faz
implicitamente, valendo-se da figura de Tomas.
Era
normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve
querer, pois só se tem uma vida, e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas
vidas posteriores (KUNDERA, 1984, p. 11).
Daí,
possivelmente, advém a necessidade de se (re)afirmar o “imperativo” moral,
fundamentado e sustentado pelo postulado nietzscheano do Eterno Retorno.
A
ética atrelada ao posicionamento expressado por Kundera, na obra, é a de que se
existisse uma educação (livre de conceitos cristalizados em verdades absolutas
e de hipocrisias ideológicas, políticas, morais, estéticas e sociais – kitsch) voltada para o pensamento não
linear ou cíclico (retorno), a vida não seria considerada tão vã, porquanto,
por essa perspectiva, há possibilidade de se conferir maior gravidade à própria
vida e comprometimento às ações humanas. Sugere-se que a “felicidade”,
categoria apreciada em Ética, se adequa a esta concepção de maneira sublime, já
que a “felicidade é o desejo da repetição” (KUNDERA, 1984, p. 247).
Não
obstante, a busca pela felicidade, enquanto ação prática ou inclinação moral,
encontra empecilhos, no seu transcorrer, inerentes à própria condição humana;
Não
existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de
comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator
entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida se o
primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida
pareça sempre um esboço (KUNDERA, 1984, p. 11).
A
estória amorosa, protagonizada por Tomas, torna verificável – nos termos da
análise literária – a referida asserção; depois de um relacionamento conturbado[5], findado em divorcio litigioso,
com sua primeira mulher, mãe de seu único filho (Simon), Tomas opta por um
estilo de vida singular, no que se refere aos seus envolvimentos com mulheres,
encontrando uma mediania pela qual se escusa de decidir entre o peso do comprometimento
de uma relação e entre liberdade da vida de solteiro:
Ele as
desejava, mas elas o amedrontavam. Entre o medo e o desejo era preciso encontrar
um meio-termo; era o que ele chamava “a amizade-erótica”. Afirmava a
suas amantes: só uma relação isenta de sentimentalismo, em que nenhum dos
parceiros se arrogue direitos sobre a vida e a liberdade do outro, pode trazer felicidade
para ambos (KUNDERA, 1984, p. 14).
Age
assim com Sabina, por exemplo, ao estabelecer com ela uma relação amorosa
absolutamente informal, fora de padrão, ainda que dotada de certa segurança. Tomas
conduz sua vida dessa maneira até conhecer Tereza, o que não representou –
segundo a narrativa de Kundera – qualquer motivo plausível para o abandono de
sua então filosofia de vida, remetendo uma vez mais à problemática da
decidibilidade:
Queria
cuidar dela, protegê-la, alegrar-se com sua presença, mas não via nenhuma
necessidade de mudar seu modo de vida (KUNDERA, 1984, p. 15).
Ademais,
isso lhe parecia supérfluo. Ninguém melhor do que ele sabia que suas aventuras
não representavam nenhum risco para Tereza. Por que privar-se delas? Essa
eventualidade parecia-lhe tão absurda quanto deixar de ir a jogos de futebol
(KUNDERA, 1984, p. 22).
O
encontro de dois mundos. Uma dupla exposição. Por trás da silhueta de Tomas, o
libertino, transparece o rosto inacreditável do romântico apaixonado. Ou então
é o contrário: através da silhueta do Tristão que só pensa em sua Tereza,
percebe-se o belo universo traído do libertino (KUNDERA, 1984, p. 23).
Mas
seria possível ainda falar em felicidade? (KUNDERA, 1984).
Sua
situação não tinha saída: aos olhos de suas amantes estava marcado pelo estigma
infamante de seu amor por Tereza, aos olhos de Tereza, pelo estigma de suas
aventuras com as amantes (KUNDERA, 1984, p. 23).
Tomas
repete para si próprio um provérbio alemão: “Einmal ist keinmal”, “Uma vez não conta, uma vez é nunca”. Não
poder viver senão uma vida, não poder testar as possibilidades e escolhas em
outras vidas, é como não viver nunca (KUNDERA, 1984).
A
aceitação é difícil, para Tomas. Não é fácil para a personagem que representa a
metáfora do empirismo[6] aceitar o caráter de
“grande necessidade” (es muss sein) e
comprometimento para com as tomadas de decisão humanas; do “imperativo” moral indubitavelmente
pesado e comprometido, sem possibilidade de experimentação e de caráter
irreversível – o tempo não volta.
O homem,
porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a
hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou
acertou ao obedecer um sentimento (KUNDERA, 1984, p. 32).
“Es muss sein! Tem que ser assim”, Tomas
repetia para si mesmo, mas logo começou a ter dúvidas: teria mesmo que ser?
(KUNDERA, 1984, p. 32).
3 DUALISMO PSICOFÍSICO E SUBORDINAÇÃO DO
SENSÍVEL AO RACIONAL: A ALMA E O CORPO
A
estória, inicialmente contada a partir da personagem de Tomas, ganha outros
contornos com Tereza. A metáfora representada por Tereza está contida na
questão do racional (da alma, do espírito) em detrimento do corpo (do sensível).
A filosofia platônica concebe a alma e o corpo como contrapontos em que à alma
cabe o mundo inteligível e ao corpo o sensível e remete discussão acerca da
alegoria da caverna.
Platão
sustenta a “Teoria do Inatismo” ou Amnese,
segundo a qual antes de se encarnar, a alma teria vivido no mundo das
ideias, onde tudo conheceu direta e imediatamente, sem precisar usar os
sentidos. Quando a alma se une ao corpo, ela se degenera por se tornar
prisioneira dele. Passa então a se compor de duas partes: alma superior (alma
intelectiva) e alma inferior e irracional (alma do corpo). Escravizada pelo
sensível, a alma inferior conduz à opinião e , consequentemente, ao erro,
perturbando o conhecimento verdadeiro. Nesse contexto, fica claro que o
conhecimento, a Verdade e a verdade em Ética e Política, para Platão, é de
natureza racional e moral, e depende do controle dos sentidos (corpo) e das
paixões (ARANHA, 2009).
Tereza
levanta exatamente essa reflexão;
Tereza
nasceu, portanto, de uma situação que revela brutalmente a irreconciliável
dualidade do corpo e da alma, essa experiência humana fundamental (KUNDERA,
1984, p. 37).
Não podia
identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida. O corpo
era uma gaiola, e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer que
olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se; essa coisa qualquer, essa
sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma (KUNDERA, 1984 p. 37-38).
Kundera
descreve Tereza como uma jovem que cultiva a verdadeira essência do amor
platônico (idealizado) por Tomas. O modo como se porta perante a relação só
torna-se compreensível a partir do conhecimento de sua vida passada, como a
descreve o autor.
Nascida
em um ambiente repugnante e hostil, conviveu durante toda sua vida com a mãe e
trabalhando como garçonete em um bar mal freqüentado da Boêmia. A mãe, uma
mulher amorosamente frustrada, fazia questão de esfregar violentamente na cara
de Tereza, e com uma suposta naturalidade na aceitação, a miséria humana. Tereza,
caracterizada como sensível e sonhadora, acabou tornando-se uma dessas pessoas
que exalta a vida do espírito e da alma, em detrimento da vida carnal, ela
tentava se ver através do próprio corpo:
Contemplava-se,
longamente, e o que a contrariava era encontrar em seu rosto alguns traços da
mãe. Olhava-se com mais obstinação e dirigia sua vontade para se abstrair da
fisionomia materna: fazer disso tábua rasa, e só deixar prevalecer
aquilo que era ela mesma. Quando conseguia, era um momento embriagador
(KUNDERA, 1984, p. 38).
Era
o desejo de não ser um corpo como todos os outros corpos que fazia com que
Tereza idealizasse seu amor para com Tomas. Tereza depositou sua vida nas mãos
de Tomas, desde o primeiro instante em que o conheceu, para que ele pudesse a
libertar do mundo hostil e opressivo em que vivia (KUNDERA, 1984).
Tereza
não compreendia a distinção que Tomas fazia dela, em relação aos seus outros
relacionamentos. Não poderia ver sua “memória poética” (KUNDERA, 1984, p. 174).
O que
urrava nela era o idealismo ingênuo de seu amor que queria ser a anulação de
todas as contradições, a anulação da dualidade do corpo e da alma, e talvez
mesmo, a anulação do tempo (KUNDERA, 1984, p. 49).
Viera
viver com ele para escapar do universo materno, em que todos os corpos eram
idênticos. Viera viver com ele para que seu corpo se tornasse único e
insubstituível. E eis que ele traçava um sinal de igualdade entre ela e as
outras (KUNDERA, 1984, p. 52).
Ambos,
Tereza e Tomas – aquela, metáfora do racionalismo extremado (idealismo); este,
expressão caricatural do empirismo –, com referenciais de vida diferentes, não
poderiam compreender o que se passava na mente um do outro.
3 A HERMENÊUTICA EM “AS PALAVRAS
INCOMPREENDIDAS”
Na
terceira parte da narrativa, intitulada “As palavras incompreendidas” Kundera revela-nos
o relacionamento vivido entre Sabina e Franz.
Conta-nos do distinto processo de construção das características e do
caráter próprio a cada uma destas personagens, durante suas vidas, e de como se
deu encontro de ambos.
Seus
referenciais de vida são claramente distintos, o que provoca uma “falha comunicativa”
(um “aguilhão semântico” que se desdobra numa “situação patética”, o amor
também não é uma “piada grotesca”) que, por sua vez, os faz atribuir diferentes
significados aos mesmos conceitos
Se eu
retomasse todos os encontros de Sabina e Franz, a lista de mal-entendidos faria
um grande dicionário (KUNDERA, 1984, p. 77).
A
partir daí, o autor contempla-nos com um pequeno léxico de palavras interpretadas
de forma distinta por cada um, dos quais, o que mais chama atenção, seja a
compreensão do conceito de “verdade”, segundo cada concepção
VIVER
DENTRO DA VERDADE: É uma fórmula que Kafka usou num diário ou numa carta. Franz
não se lembrava bem. Estava seduzido por essa fórmula. O que era viver dentro
da verdade? Uma definição negativa era fácil: era não mentir, não se esconder,
não dissimular nada. Depois que conhecera Sabina vivia na mentira. Conversava
com sua mulher sobre congressos em Amsterdã, conferências em Madri que jamais tinham
acontecido, tinha medo de passear com Sabina nas ruas de Genebra (KUNDERA
,1984, p. 97).
Franz
considera que a verdade só pode ser obtida com a total supressão da esfera íntima,
privada e individual, ou melhor, para ele, somente a fusão das esferas pública
e privada constitui a real fórmula da verdade ou o meio para se chegar a tal.
Franz
remete ao episódio histórico que permea a narrativa; a concepção moral-social
dos regimes totalitários (em especial a do regime stalinista, aludido) convenientemente
postula pelo fim (negação) da vida individual. Esta é, por sua vez, a exata
crítica feita pelo autor quanto ao episódio da Primavera de Praga e quanto ao
comunismo e Sabina representa a subversão, insurgência ou resistência, até
certo ponto. Para ela:
Não
mentir nem para si nem para os outros, só seria possível se vivêssemos sem público.
Havendo uma única testemunha de nossos atos, adaptamo-nos de um jeito ou de
outro aos olhos que nos observam, e nada mais do que fazemos é verdadeiro. Ter
um público, pensar no público, é viver na mentira. Sabina despreza a literatura
em que o autor revela toda a sua intimidade, e também a de seus amigos. Quem
perde sua própria intimidade perde tudo, pensa Sabina. E quem a ela renuncia
conscientemente é um monstro (KUNDERA, 1984, p. 97).
Essa
maneira de se posicionar perante à vida é o que distingue a personagem de
Sabina da personagem que representa a mãe de Tereza, por exemplo. Ambas
exploram profunda e intensamente todos os vieses de suas sexualidades. Sabina,
porém, conserva seu íntimo. A mãe de Tereza exacerba às últimas conseqüências e
divulga detalhes de sua vida íntima para todos. A mãe de Tereza seria um
monstro, segundo o pensamento de Sabina. Sabina faz a separação nítida entre
esfera pública e privada (esta última compreende a esfera íntima). Para ela
esta é a única forma de se viver “dentro da verdade” (KUNDERA, 1984, p. 97).
4 KITSCH: IDEAL ESTÉTICO E IDEOLOGIA DA
GRANDE MARCHA
Paradoxalmente,
Sabina e sua concepção acerca da verdade aparecem na mesma via do pensamento
que a própria personagem acusa como ideológico/hipócrita e quer, supostamente,
se insurgir. Kundera especula, agora, a respeito do Kitsch. Kitsch é uma palavra de origem alemã de significado e
aplicação controversos, usualmente empregado no estudo da Estética para
designar mau gosto, comoção e falta de critérios dos produtos destinados ao
consumo de massa.
Kundera
entende o termo como uma atitude e um espírito geral de complacência e
supressão do senso crítico, que pode se estender a áreas bem distintas da arte
(enquanto técnica), como a política, a religião, a economia, o erotismo e
praticamente toda a esfera da vida humana.
A
estÉtica do kitsch, de enorme
penetração na psicologia das massas, muitas vezes é usada pelas elites para
dirigir a opinião pública, seja na forma de publicidade comercial, educação
escolar, propaganda partidária ou iconografia religiosa. Mais ainda, para o
autor “o kitsch exclui de seu campo
de visão tudo que a existência humana tem de dionisíaco; de essencialmente
inaceitável” (KUNDERA, 1984, p. 207).
A
primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha uma conotação
ética, mas estética. O que a repugnava não era tanto a feiúra do mundo
comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com
que ele se disfarçara, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a
festa do 1° de Maio (KUNDERA, 1984, p. 207).
O
kitsch não era apenas uma ideologia
comunista ou um acordo político com o comunismo, mas sim um “acordo categórico
com o ser” (KUNDERA ,1984, p. 207) pelo qual tudo que o mundo tem de mais “inaceitável”
é negado como se não existisse, daí a subsistência dos tabus e hipocrisias
morais e regras de comportamento social a que Nietzsche chamou “moral de rebanho”.
O kitsch é conveniente, é uma
convenção social; para se consolidar,
necessita ser compartilhado pelo maior número de pessoas possível. O kitsch comove.
Sabina,
durante toda sua vida afirmou que seu inimigo era o kitsch. “Mas será que ela não o carregava no fundo de seu ser?”
(KUNDERA, 1984, p. 213). Se o kitsch
mascara a realidade, sua concepção de verdade não a faz diferente do próprio kitsch. Na vida pública, Sabina encena e
mascara sua própria realidade.
Sabina
aparece como tudo o que mais odeia. De outra face, como conservar a própria
individualidade sem se utilizar do kitsch
ante tal invasão sócio-política opressora e cotidiana? O indivíduo não pode
ser uma extensão do coletivo. Não suportaria a perda do subjetivismo que lhe é
peculiar, ao mesmo tempo em que se identifica enquanto “eu” somente em função
do “coletivo” e das comparações entre outros sujeitos.
5 O VERDADEIRO TESTE MORAL DA HUMANIDADE
Na
última parte de seu livro, “O sorriso de Karênin”, Kundera conta a trajetória
de Karênin, a cadela dada por Tomas de presente à Tereza e registra a diferença
de percepção do tempo entre as espécies biológicas. Reflete novamente,
portanto, acerca do postulado filosófico e ético-moral que sustenta toda sua
obra – Eterno Retorno.
O
tempo do homem é linear e o do cão circular. Quando mudaram-se para o interior,
a “única possibilidade de evasão que os restava” (KUNDERA, 1984, p. 233) “o
tempo em que Tereza e Tomas viviam se aproximava da regularidade do tempo de
Karênin” (KUNDERA, 1984, p. 236). O fato de o tempo do homem ser apreendido de
maneira linear acaba por apagar a significância de uma vida, de uma história
Muitas
vezes nos refugiamos no futuro para escapar do sofrimento. Imaginamos uma linha
na pista do tempo, e pensamos que a partir dessa linha o sofrimento presente
deixará de existir (KUNDERA, 1984, p. 139).
Nós,
seres humanos, sujeitos sociais, culturais, morais, procuramos a evasão na
nostalgia do passado ou na esperança do futuro. Kundera atenta para uma preocupação
com a ação prática (moral) presente. Preocupa-se com a Ética e com a Política
vigentes em seu tempo. Não se pode negar que a vida tem caráter passageiro, que
as situações vividas passarão. Tudo passa.
Contudo,
a ética circular introjetada pelo Eterno Retorno dá-nos uma nova perspectiva
das nossas próprias escolhas. Faz-nos refletir acerca de nossas ações e de
conferir grande importância e comprometimento às mesmas. Não no sentido de
verificabilidade e comparação entre todas as hipóteses de ação prática, afinal,
como vivo uma única vida (“esboço sem quadro”), não posso estar “certo de ter
agido bem” (KUNDERA, 1984, p. 184). Mas, com a filosofia do eterno retorno,
posso estar “certo de ter agido como queria” (KUNDERA, 1984, p. 184) agir, de ter
decidido como queria decidir. Essa é a verdadeira proposta de uma Ética calcada
no Retorno[7].
Em
torno de Tereza e de Tomas, Karênin traça o círculo de sua vida, baseada na
repetição, esperando deles a mesma coisa (KUNDERA, 1984, p. 247).
Outra
proposta de reflexão, feita por Kundera, diz respeito ao relacionamento entre o
Homem e as outras espécies animais. Para Kundera, a ação moral pode ser medida
ou determinada pelas relações de força ou relações de poder entre o
indivíduo humano e os que estão hierarquicamente abaixo dele na escala
evolutiva darwinista (KUNDERA, 1984).
A
verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a
liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro
teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao
nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais
(KUNDERA, 1984, p. 240).
Esta
é, sem dúvida, uma das passagens mais belas da obra de Kundera.
6 CONCLUSÃO
A
belíssima obra literária de Milan Kundera faz-nos refletir acerca da Ética e da
condição humana, sob um regime político totalitário e sob imposição de uma
atitude moral social convencional, que praticam o horror e anulam o humor, o
colorido e o romantismo do dia-a-dia. Para Kundera, apenas através da
libertação dos sujeitos e afirmação do subjetivismo pessoal poderia ocorrer uma
verdadeira revolução.
Mostra-nos
a necessidade de se conferir valor e comprometimento às ações, através de uma
Ética que exclui o caráter fugaz da vida. Especula acerca das relações a que
todos nós estamos propensos ou sujeitos (submetidos pela contingencialidade do
fenômeno humano, do humanamente possível). Propõe uma abordagem inteiramente
nova do problema moral e contribui imensamente para a reflexão da ação prática
humana e seus desvios, além de fomentar o debate acerca da moral cíclica. Em
sua obra, Kundera militou por uma ética do retorno.
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Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia .São Paulo: Moderna, 2009.
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[1] Trabalho apresentado como avaliação
na disciplina “Abordagem Moderna da Teoria da Justiça”, ministrada pelo
Professor Dr. Luiz Otávio Pereira.
[2] Discente regularmente matriculada no
curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Pará/Instituto de
Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito, sob o número de matrícula 12641014101.
[3] Sugestão de leitura introdutória
acerca do assunto: GOLDFEDER, Sônia. A
Primavera de Praga. São Paulo: Brasiliense, 1981.
[4] A idéia diz respeito à possibilidade
das situações da existência/vida se repetirem indefinidamente no tempo, por
força de uma finitude das possibilidades frente à infinitude do tempo
(NIETZSCHE, 1987).
[5] “Tomas vivera apenas dois anos coma
primeira mulher e tivera um filho. No julgamento do divórcio, o juiz confiou à
mãe a guarda do filho, condenando Tomas a pagar-lhes um terço de seu salário.
Concedeu-lhe também o direito de ver o filho duas vezes por mês. Mas toda vez
que Tomas deveria vê-lo, a mãe desmarcava o encontro. Ele se imaginava mais
tarde quixotescamente querendo inculcar suas ideias na cabeça do filho, ideias
diametralmente opostas às da mãe. Um domingo em que a mãe, mais uma vez,
desmarcara no último minuto uma saída com o filho, ele decidiu que nunca mais o
veria. É obvio que ninguém estava preparado para aceitar tal raciocínio. Seus
próprios pais o reprovavam. Conseguiu, portanto, em pouco tempo,
desembaraçar-se de uma esposa, um filho, uma mãe e um pai” (KUNDERA, 1984, p.13
– 14).
[6] A profissão
que exerce (medicina), o "bisturi imaginário" (KUNDERA, 1984, p.
167), o "milionésimo de diferença" (KUNDERA, 1984, p. 166), os
sentidos à flor da pele, a rigorosa separação e distinção entre o subjetivo
(alma, amor por Tereza) e o objetivo (corpo, desejo sexual por outras
mulheres)... Tomas representa a corrente empírica, figurativamente.
[7] A conceituação de “verdade” ou
“mentira”, “bem” ou “mal”, não encontra acomodação no pensamento de Nietzsche,
que postula para além das noções de bem e de mal. A Ética Cíclica busca criação
através da destruição: só pela complementação é que poderemos transcender e
reafirmar a vida em detrimento dos valores que degeneraram e envenenaram a
humanidade. A moral de rebanho é a verdadeira cicuta, não as “escolhas ruins”. Não
posso crescer se não experimento o declínio e vice-versa. O Eterno Retorno se
afina com o conceito de “amor fati” (amor ao destino que se escolhe,
deliberadamente).
Pena não vermos mais publicações no Blog.
ResponderExcluirContinuem.