quarta-feira, 6 de julho de 2011

DESPERTANDO O DIREITO ENCOBERTO PELA CASCA DOS CÓDIGOS

MARIA IZABELA SILVA VIDAL

UM OLHAR PENETRANTE E SENSÍVEL À PENUMBRA DE UM CASO DIFÍCIL

No exercício do cargo de juíza deste tribunal, reconheço que tenho um sério
compromisso com o Direito e a Justiça. Entretanto, tenho a convicção de que a tarefa de agir na sociedade em prol da concretização dessa última não se confunde com a mera aplicação da Lei. Assim, creio que a ética de um juiz de direito é, sobretudo, uma “ética do olhar” – um olhar flexível e desarmado já reivindicado por Norbert Rouland ao nos instigar a “descobrir melhor o nosso direito, embaixo da casca dos códigos” (2003, p.407). Desse modo, arrisco-me a lançar um olhar profundo sobre esse caso dos exploradores de cavernas, desprendendo-me do tecnicismo cego e adentrando o íntimo dos quatro réus.
Para isso, busco apoio nas conclusões de Gustav Radbruch ao analisar as fronteiras entre Direito, moral e costume: segundo ele, “o comportamento interior não é absolutamente indiferente ao direito” (1999, p.4), de modo que à avaliação jurídica não deve escapar as intenções e os sentimentos do indivíduo, uma vez que as suas ações decorrem do seu estado emocional.
É um equívoco, portanto, tratar o interior de um suposto criminoso como fonte secundária de suas ações. Desse modo, considero fundamental na análise desse caso o forte choque emocional, devido principalmente à iminência da morte e ao isolamento social, que certamente levou os espeleólogos, inclusive Roger Whetmore, a apostar suas vidas em um jogo de dados, com o intuito de que, em meio ao muito provável padecimento naquela caverna, ao menos quatro dentre eles retomassem a esperança de dela sair com vida.
Nesse sentido, concordo, assim como Dworkin (2002, p.17-18), que as pessoas, em geral, não enxergam as outras simplesmente como corpos em movimento, mas sim interpretam esses movimentos como manifestações de intenções, de modo que se o direito não olhasse as pessoas dessa forma, estaria tratando-as como meios e não como fins. Aplicando essa observação no caso dos exploradores, poderia alegar que a recusa inicial dos réus a prosseguir com a proposta de Whetmore nos mostra que, para eles, foi torturantemente complicado conformar-se com o fato de que, caso não saíssem todos mortos da caverna, provavelmente perderiam um ou mais dos colegas ali presentes. Entretanto, mesmo com o desamparo dos médicos, juízes e sacerdotes (que ignoraram os pedidos de conselho dos cinco espeleólogos quanto à viabilidade daquele crime), os colegas de expedição (em risco de inanição e em circunstâncias de profundo abalo emocional, insisto) aceitaram a possibilidade de perder um dos colegas ou a própria vida em prol deles.
Portanto, não foi uma suposta periculosidade ou uma mera perversidade que levou esses quatro espeleólogos a tomar a atitude tão desesperada de se alimentar da carne de Whetmore. Certamente não agiram desse modo simplesmente porque queriam que assim o fosse. Reforço esse ponto lembrando que, para Dworkin, “os homens [em geral] sentem que escolheram agir do modo que agiram, mas não sentem dessa mesma maneira em circunstâncias particulares que envolvam acidente, compulsão, coerção ou doença” (2002, p.18), ou seja, o indivíduo não sente que de fato optou por uma determinada ação quando alguma circunstância externa o inclinou àquela.
Desse modo, recuso-me a julgar esse caso e, por conseguinte, a interferir no destino desses desafortunados enxergando somente a transgressão a uma norma jurídica. E, assim como Dworkin (2002, p.18), concordo que o melhor modo de se julgar o comportamento de um Homem é aquele em que o observador se esforça a olhá-lo do mesmo ponto de vista com o qual o observado julga a si mesmo, isto é, do ponto de vista de suas intenções, motivos e capacidades.

O MITO DO RETORNO AO ESTADO DE HORDA

Infelizmente, a aproximação, que tanto defendo, entre o Direito e a realidade humana ainda esbarra na inércia daqueles que se agarram à dogmática jurídica, esquecendo a esfera humanista e social do Direito. “Uma causa deixa de ser nobre quando os seus defensores confundem os seus corpos com a lei”, afirma Warat (1994, p.85), alegando que o compromisso com o outro é, antes de tudo, um compromisso com a lei, de modo que ignorá-la levaria a Humanidade a um “retorno ao estado de horda”, onde imperaria a impunidade.
Entretanto, nego-me a tomar a medida tão simplista de adivinhar a vontade da lei, de buscar um suposto “propósito” ao qual serve a norma ou ainda de procurar alguma lacuna na legislação que possa proteger esses quatro espeleólogos de mais um abalo emocional, que dessa vez seria promovido pelo Estado. Para sustentar isso, alego que eu, assim como Dworkin (2002, p.14), concordo que o Direito Penal, mesmo que tenha o propósito de prevenir crimes, pode se submeter a princípios que limitam a sua eficiência para alcançar aquele objetivo: desprezar esses princípios seria ultrapassar a linha que protege a dignidade do “sujeito de direitos” da interferência do Estado.
Quanto ao possível “retorno ao estado de horda”, que supostamente decorreria do fato de que uma impunidade justificaria outra, faço novamente uma alusão ao pensamento de Dworkin (2002, p.138-139), alegando que a coerência na aplicação de um princípio consiste na adequação de uma determinada política sobre o caso em questão, de modo que os princípios já empregados em decisões anteriores somente poderiam ser retomados com a condição de que se mostrasse que os novos casos são compatíveis com aqueles mesmos princípios.
Desse modo, considero falso o argumento segundo o qual a não punição dos quatro réus poderia, posteriormente, justificar a impunidade sobre homicídios que, apesar de aparentemente similares ao que está em questão, ocorreriam em circunstâncias muito diferentes das que envolveram esse caso dos exploradores.
Atento-me ainda ao fato de que a partir do século XIX, segundo Foucault (2003, p.84), a noção de criminologia e de penalidade cedeu espaço, na teoria penal, à noção de periculosidade, que, em termos práticos, indica que o controle penal punitivo dos indivíduos deve estar “ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos, não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. Desse modo, julgo improcedente a aplicação do que Foucault (2002, p.86) chamou de “ortopedia social” (correção das virtualidades do indivíduo) sobre esses quatro espeleólogos, pois é certo que eles não são inimigos da sociedade, isto é, não representam efetivamente uma ameaça a ela.

A MARCHA FÚNEBRE DOS DITAMES DAS LEIS

Esse caso certamente representa o que, para De Giorgi (2006, p.60-70) seria uma “ruptura” da memória do Direito, orientado justamente para uma adequação à realidade do caso, cuja excepcionalidade me faz considerar temerário entregar a sorte desses homens aos ditames da Lei. É certo, entretanto, que mesmo escapando ao choque carcerário ou a qualquer outro modo de punição, esses homens estarão para sempre atormentados por aqueles 32 dias de horror e pelo remorso de ter sacrificado a vida de um colega. Não encontrando motivos para puni-los mais ainda, absolvo, portanto, os quatro exploradores de cavernas.

REFERÊNCIAS

DE GIORGI, Raffaelle. Direito, tempo e memória. Trad. Guillerme Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FOUCAULT, Michel. As verdades e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Trad. Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.

RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Trad. Vera Barkalow. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WARAT, Luís Alberto. Teoria do direito e do estado. Porto Alegre: Sérgio
Fabris, 1994.

Um comentário: